HORS CONCOURS – CONTO – PROSA ESTUDANTIL – ESPECIAL OURO BRANCO – INTERMEDIÁRIO – Colégio Batista Mineiro Unid. Ouro Branco – VIII Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"

Dandara de Benguela


 Letícia Lima Diniz Araújo
2ª série do Ensino Médio

Dandara, de cabelos escuros como o carvão originário das jazidas de Candiota e cheios como jabuticabeiras em meio a setembro, com a pele beijada pelo sol de Araçuaí, de beleza a se comparar a de um Pau-d'arcos amarelo vibrante em meio a mata fechada do município de Guaramiranga. Fora cobiçada, desde o porto lotado do qual o navio negreiro fora atracado, até sua compra em meio a irmãos e irmãs na praça quente da capitania do Rio de Janeiro. Dandara de Benguela, originária da terra, a qual foi dominada pelos homens brancos de olhos verdes iguais as árvores ralas presentes na região, foi forçada a se mudar para terras brasileiras no ano de 1708 e aqui ficou para sempre seu corpo e alma.

Ela fora vendida por 100$500 réis para um rico português que aqui estava de passagem, junto a um grupo de paulistas que almejavam chegar nas novas minas de ouro encontradas na atual região de Minas Gerais. Dandara já judiada e traumatizada pelas condições às quais fora transportada e pela opressão presenciada em sua própria terra, não questionava ou ao menos falava, ao ponto de ser considerada muda por seu comprador e consequentemente, perdendo parte de seu valor na visão dos homens brancos. Assim, com os punhos amarrados a uma corda - a qual estava ligada a sela de uma das mulas dos homens – a recente escravizada foi deixada ao acaso junto de outros cinco semelhantes à sua pele, os quais andavam enfileirados, um atrás do outro, ligados a uma mesma corda como animais sendo transportados.

A jovem de apenas dezessete anos caminhava pela original Estrada Real, marcada pelos cascos desgastados de mulas e rodas de madeira dos tropeiros que sustentavam o povo aventureiro em busca de ouro e riquezas. Ela era obrigada a passar por aquele caminho irregular debaixo do sol ardente do país tropical enquanto seu senhorio balançava as botas de couro sentado sobre seu transporte barulhento de quatro patas. Dandara trocava olhares melancólicos com os seus semelhantes que a respondiam da mesma maneira. Apenas um deles - o mais robusto e corajoso – tentara se comunicar com ela em um tom baixo, porém a bela moça não o respondera e nem aparentava ter ouvido.

O grupo andara por dias e noites com pausas rápidas as quais eram utilizadas apenas para alimentação, descanso e necessidades básicas. Os escravizados eram alimentados com meio pedaço de pão, se conseguissem, das sobras que os brancos haviam consumido na hora. Caso sentissem sede, teriam que beber em um riacho próximo ou da chuva que caia como lágrimas sobre suas cabeças. Porém, depois de passarem uma semana e meia, os donos daqueles seres judiados começaram a pensar duas vezes antes de dar o tão sofrido meio pão, até chegar em um momento, que pararam de fazer até mesmo aquela simples generosidade.

Dandara sentira frio, fome, cansaço e dor tanto em seu corpo esculpido quanto em sua alma delicada. Em sua cabeça, como uma forma de acalmar um pouco seu espírito sofrido e fugir de tanta miséria a jovem recitava a antiga cantiga Banaha, originária de seu povo, a qual cantava e dançava quando sua vida era bem-fadada. Percebendo o movimento constante e silencioso da boca carnuda da recém-chegada um dos outros escravos que aparentava ser mais recluso e fraco, desferiu um sorriso para a cantora, admirando a beleza da cena. Dandara apenas percebera que estava sendo observada depois de já ter recitado três vezes a música em sua cabeça de maneira melancólica e nobre. Rapidamente selou sua boca, permitindo apenas um leve levantar do canto de seus lábios como forma de esperança e tempos melhores no futuro.

Depois de andar mais quinze dias, subindo o mar de morros que compõe a região de Minas Gerais, o português que liderara os outros por todo o caminho parou seu animal com um puxão forte nas rédeas e se virou para os outros cinco paulistas começando a trocar palavras e apontar para uma sinalização nas árvores em volta da estrada de terra.

Os escravos agradeceram aos seus deuses e abaixaram apenas o suficiente para tirarem um pouco das pedras presas aos seus pés minimizando a dor da caminhada incessante que percorreram. Com o passar de uma longa discussão, que nenhum dos escravos conseguira entender por causa da diferença dialetal entre eles.  Os senhores subitamente puxaram a corda que unia os escravizados de forma grosseira, brusca, levando-os para fora da estrada de terra, deixando as duas cordas amarradas em volta de duas árvores opostas. Depois de certificarem que a corda estava bem amarrada à árvore, os homens brancos se viraram e adentraram a mata fechada sem demora. Nenhum dos escravos entendia o porquê de tal ação repentina, provavelmente por não terem entendido o significado dos símbolos que demonstravam de quem era aquela região e sobre a violência gerada por causa dos Emboabas. 

De cabeça baixa e com o rosto coberto pelos cabelos, Dandara permanece em pé com as mãos juntas, marcadas pela pressão exercida pela corda e uma dor ardente proveniente da insolação em seus ombros e costas que começavam a descascar. Ela se recusava a se mover e mal se via o movimento de sua respiração, parecia uma estátua melancólica de barro esculpida por um nobre artista que aos poucos se desgastava com o tempo. 

Com o passar de três horas completas sem nenhuma movimentação vinda de nenhum dos escravos, a jovem não conseguiu mais sustentar tamanho sofrimento e se ajoelhou em meio a grama e pequenas pedras, com as mãos sobre a cabeça. Ainda amarradas ao tronco da árvore, ela iniciara um choro baixo e sofrido com lágrimas secas e desidratadas deixando seu rosto ardido por causa das queimaduras presentes em suas bochechas carnudas. Os outros escravos direcionaram-na olhares breves, sérios ou incompreensíveis pela sua situação que claramente demonstrava que não suportaria outros dias andando em tais condições.

Os escravos esperaram por um dia inteiro aguardando com olhares temerosos para mata fechada a volta dos brancos, mas depois de ficarem observando por tanto tempo com os membros inferiores tremendo de dor e medo, todos acabaram sentando-se no chão frio e seco da noite por causa da exaustão. Todos a não ser Dandara conseguiram adormecer encolhidos um próximo do outro de forma miserável, buscando a mínima proteção fornecida pela pequena copa do pequizeiro que tanto os cobria do sereno da noite e os aprisionava junto da corda em volta de seus punhos.

Depois de tanto observar e pensar em como sua liberdade fora roubada e esmagada como nada, o espírito estilhaçado da jovem começou a se render ao cansaço pregado por todo seu corpo desde o início dessa viagem. Antes de finalmente cair no sono sobre a vegetação rasteira seca do cerrado, seu descanso foi interrompido por um som alto vindo subitamente da mata densa ao seu lado. O som fora tão alto que fizera a jovem que antes era considerada muda, soltar um som estridente e áspero de sua garganta acordando os outros escravos que se debateram de susto e cobriram a cabeça com os braços ainda amarrados aterrorizados. O som fazia-os lembrarem da luta travada em sua terra natal contra os brancos que os matavam de maneira inexplicável com um objeto que produzia tal estrondo.

Apenas depois de quinze minutos, os escravos se acalmaram, mas ainda tensos, levantaram-se e se olharam. Antes de tomarem coragem para começar uma conversa entre si. O tom utilizado por eles era tão baixo que chegava a ser difícil de serem ouvidos e Dandara entendia apenas algumas palavras soltas do dialeto deles que se distanciava bastante do seu. Isso amedrontava cada vez mais a jovem, junto aos olhares julgadores e receosos que, de vez em quando, um deles lançava para ela antes de voltar a sussurrar junto aos outros. A jovem depois de um grande esforço conseguiu se levantar. Suas pernas bambeavam de medo, dor e frio e pareciam galhos secos de árvores prestes a quebrar. Logo depois de um tempo, um dos outros escravos se virou para os outros e apontou para Dandara e começou a falar novamente, mas em um tom firme. A jovem entendeu dessa fala apenas a palavra “fraca” o que a fez congelar. Ela ficou analisando aquela palavra em sua mente e ela começou a perceber como era vista pelos outros escravos.

Em um piscar de olhos a conversa foi encerrada. Todos os escravos se entreolharam e de repente começaram a forçar as suas mãos para os lados, fazendo movimentos para afrouxar a corda. Como animais loucos se debatendo, começaram a rasgá-la com os dentes como feras loucas por sua tão almejada liberdade. Dandara percebendo a situação desviou seu olhar para os escravizados pedindo ajuda. A jovem tentou correr até eles, mas suas mãos foram puxadas forçando a cair de joelhos com força no chão. A jovem sentiu uma dor aguda como uma faca sendo enfiada no local e seu rosto começou a se contorcer cada vez mais de dor.

Depois de uma longa batalha que rendeu alguns dentes quebrados, gengivas machucadas e punhos vermelhos sangrando, os escravos conseguiram finalmente sua tão sonhada liberdade. Algumas lágrimas banhadas em alegria e alívio saíram de seus olhos e todos se entreolharam com sorrisos alegres e radiantes no rosto, mas nenhum deles olhara sequer uma vez para Dandara. 

A jovem ficou de pé depois de ver que os outros estavam livres e ela os olhava com esperança e com brilho no olhar, mas fora respondida apenas por uma breve troca de olhares distante de um dos homens. A escrava tentava falar com eles e olhava para o homem mais recluso e escondido o qual havia sorrido para ela antes, lançava súplicas de todas as formas que conseguia orando aos céus e a terra por também conseguir sua liberdade, mas os homens apenas a olhavam com olhares sofridos. Depois de alguns minutos, os homens decidiram começar a fugir do maldito lugar. Eles correram como guepardos das savanas africanas com seus espíritos livres.

Dandara começou a gritar com toda a força que ainda havia em seus pulmões secos para que os outros voltassem. Seu desespero fez alguns pássaros acordarem de susto e levantarem voo sem uma direção assustando a garota com suas repentinas trombadas e grasnos agudos. Desesperada, ela começara a puxar e a roer a corda como uma ratazana presa nas linhas de uma armadilha até seus pulsos ficarem roxos e sua gengiva sangrar.

A escrava adquirira sua liberdade apenas depois dos outros estarem longe demais para serem seguidos ou de a ouvirem chorar por piedade e segurança. Dandara conseguiu sua libertar, mas não se sentia mais viva ou minimamente alegre por isso. Ela iniciou uma corrida desesperada pela mata fechada indo em direção aos outros sem se importar onde pisava ou passava, parecia uma lebre fugindo de uma onça tentando se agarrar ao pequeno fio de esperança e vida que lhe restava.

Quanto mais ela corria, mais seus braços eram rasgados pelos galhos secos e afiados das plantas. Seus pés já sangrando ardiam como se ela estivesse pisando em lava incandescente. Por causa das pedras afiadas e sujeira da terra que impregnava a cada passo mais fundo em sua pele, ela começou a correr cada vez mais lento, a gritar cada vez mais baixo até que sucumbira de repente, caindo em um tronco retorcido de uma árvore. Ela soltava um som rouco e agoniante. Seus olhos já sem umidade para liberar lágrimas e com a cabeça doendo com zunindo agudo crescendo a cada respirada de forma insuportável, Dandara começara a cair de forma desorientada ralando suas mãos na textura áspera do tronco que mais se parecia uma lixa. Ela caiu batendo a cabeça com força no chão duro e seco. Seu corpo não fora tocado nem por uma singela formiga como se ela fosse um animal inútil e indesejado que fora abandonado por seus donos.

Dandara andara por dias e noites em meio aqueles arbustos e árvores. Ela seguia em linha reta, e quando caia, ou por causa de algum buraco ou por falha de suas pernas já bambas como as de uma cadeira velha, ela apenas se levantava depois de várias tentativas falhas junto de mais arranhões e manchas de sujeira em sua pele. A jovem também parou de sentir a dor tão agoniante do seu corpo com o passar do tempo. Ela não sabia se seria um presente que recebera de piedade depois de tantas orações que fizera desde o início daquela caminhada, ou se era por ter perdido a sensibilidade dos membros que teriam infeccionado. 

Ela suportara andar por dois dias e duas noites, apenas com o som estranho das aves que lhe faziam companhia.  Até que a pobre moça chegara à beira de uma montanha, um penhasco profundo que permitia ver uma vastidão verde no plano abaixo. Ela chegou até poucos metros da beira do local, já cansada de andar e lutar por uma vida que estava fadada a acabar de qualquer maneira. Dandara se ajoelhara olhando para o conjunto de morros verdes com alguns pontos delicados amarelos e rosados das árvores floridas da época, para o céu limpo e brilhante destacado pelo contraste das cores, com seu azul cintilante ressaltando ainda mais a beleza do vasto cenário. Ela também ouvia os cantos alegres e vibrantes da mata brasileira, contudo, Dandara não via nenhuma beleza em tal paisagem. Ela ficou observando tudo aquilo apenas permitindo se lembrar da simplicidade harmoniosa das árvores ralas e secas, dos arbustos espinhentos e espaçados, da terra seca e arenosa e das gramas altas e amarelas. Ela sentia falta do ar quente, do silêncio que abraçava seus pensamentos permitindo que se perdessem em mundos fantasiosos e cheios de alegria e esperança. Queria sentir o calor reconfortante de sua terra, Dandara almejava a paz de espírito que apenas adquiriria voltando para seu lar.

Antes de fechar seus olhos, a moça sofrida conseguira pela última vez cantar a antiga cantiga de seu povo com força ao ponto de sua voz se assemelhar a de uma gralha sendo apertada.  Ela cantava como se estivesse orando por sua própria paz de espírito, como se aquela singela canção pudesse acalmar aqueles gritos agoniantes em seu coração e fazê-la viver novamente como já fizera tantas vezes antes. Ela cantava pensando que poderia voltar para casa, que iria se reencontrar com quem importava. 

O espírito da jovem mesmo depois de tanto suplicar por sua terra acabou ficando preso naquela encosta e ali ficou sofrendo acumulando tristeza e ódio pesando cada vez mais sua alma. Aos poucos, Dandara começou a afundar na terra em vez de apenas flutuar por causa do peso em seu coração já corrompido pela maldade do mundo. Ela conseguiu o mínimo de paz quando fora abraçada completamente pela escuridão da terra se acalmando apenas o suficiente para conseguir chorar e libertar aos poucos a dor que seu espírito cultivara ao longo de tanto tempo.

As lágrimas de Dandara eram brilhantes como ouro e seus lamentos puros como as águas da nascente do rio Sucuri, e todo seu sofrimento fora se acumulando em meio ao solo fértil de terra roxa e se transformando ao longo dos anos em um aglomerado de pedras de ouro claro ao ponto de serem chamadas de brancas.

Muitas pessoas já tentaram adquirir o tesouro de Dandara, os mineradores cheios de ganância invadiam as terras e maltratavam o solo. Muitos espíritos se enraiveceram com tal falta de respeito, inclusive Dandara, que de propósito emergia pequenos fragmentos brilhantes de sua alma. No topo da serra em que morrera, atraia todo e qualquer homem branco cheio de desejos corrompidos para o berço de suas criações que os maravilhavam de maneiras surpreendentes.

Porém, depois de adentrar em territórios de Dandara, nenhum homem branco conseguia sair e todos tiveram o destino de uma morte quase tão agoniante quanto a da própria ex-escrava que depois utilizava o corpo para nutrir suas próprias criações que passaram a ser o motivo de sua existência no mundo. Dandara considerava aqueles pedaços de ouro como se fossem suas próprias crianças que nunca tiveram a oportunidade de se formar ou sair de seu ventre. Por causa dessa fissura na proteção das pedras, os moradores de um vilarejo próximo - que contavam essa lenda de geração em geração para ninguém incomodar o espírito vingativo - começaram a chamar Dandara de Benguela de Mãe do Ouro. Ao ponto de até mesmo seu nome se perder com o tempo, ficando apenas o seu título e a lenda de suas luzinhas que de vez em quando ainda podiam ser vistas brincando como duas crianças sobre a gigantesca serra do Deus-te-livre.

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