5° LUGAR – CRÔNICA – PROSA NACIONAL – VIII Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"

 A metamorfose do vazio


Julia Malissi Alves de Arruda
Indaiatuba/SP

Eu não sei se foi a influência da virada do século, a criação antiquada e longe de acesso à  eletrônicos, ou o fato de eu ter nascido a tríade perfeita dos signos de terra, mas a minha  sensibilidade aos detalhes da vida que nos tornam eternos seres em evolução, cresceu junto  comigo ao longo dos anos. 

Algo que me chamou atenção para esse assunto, foi um dia em que passei pela mesa de um  colega de trabalho, e nela havia um calendário de papel (desses que você ganha de brinde no  mercado, nas casas de ração, ou em congressos). Nunca entendi o calendário em cima da  mesa nos escritórios de grandes corporações. Eles investem em equipamentos, então você  pode ver a data no seu computador, ou no seu celular. E fica ainda mais engraçado quando é  uma pessoa que usa Smartwatch, sentada atrás de uma dessas mesas, porque o Smartwatch também consegue te dizer em que dia estamos.  

É tudo mais do mesmo; eles compram um relógio que supostamente faz as funções do  celular, compram celulares que fazem as funções dos computadores, e computadores onde  eles podem guardar as informações, que só querem lembrar mais tarde. 

Mas o que me intrigou é que esse calendário mostrava o mês de julho, e já estávamos em  setembro. 

Quando perguntei a esse colega de trabalho qual era o objetivo do calendário na mesa dele,  considerando que não o usava, ele me disse: “Preenche o vazio do ambiente”.  

E essa fala me levou a pensar se somos apenas isso. Acumuladores de espaços cheios de  nada. 

E se eu parasse para analisar somente os detalhes que ressaltam a solidão que as pessoas  sentem, e parecem querer evitar a todo custo, no dia a dia? Qual seria o tamanho de um texto,  que falasse sobre tudo isso? 

Muito se fala sobre o ensino da vida em sociedade, mas não seria ainda mais importante  ensinar as pessoas a viverem bem com seus vazios? Saber ser feliz consigo, conforme  aprendem a serem felizes em seus círculos sociais? 

Nesse mesmo dia, reparei que um restaurante onde eu tinha o hábito de almoçar, tinha música  ambiente. Não que me incomodasse, até porque demorei a notar, mas me fez lembrar de um  artigo que li em algum lugar, que falava sobre como chamavam esses instrumentais de  “música para mobília”, pois foi inventada para preencher o vazio auditivo de lugares onde não há nada para ser dito.  

Mas esse gênero musical só existe porque existiu um lugar onde poderia fazer parte. A arte só  existe, pois havia um lugar onde pudesse ser criada. Se não houvesse calendários de papel,  como sequer existiria a ideia de um digital? 

Se toda ideia for originada do vazio, e da necessidade de preencher algo, a perspectiva  pessimista então é capaz de ser abandonada. Talvez as pessoas mais felizes sejam as que 

aprenderam a aceitar o que falta em si, ou as que transmutaram essa energia em algo  completamente novo. Seja arte, tecnologia, gastronomia, ou até mesmo um modo de viver. 

Para os astrônomos, o vazio são os filamentos que possuem poucas, ou nenhuma galáxia.  Para os arquitetos, são os locais com ausência de construções. Na minha visão, o vazio é uma,  senão a mais importante, das razões pela qual a humanidade consegue se desenvolver.


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