5° LUGAR – CONTO – PROSA NACIONAL – VIII Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"

 Eu também vivi na Arcádia


Mara Vanessa Torres de Menezes Federico
Rio de Janeiro/RJ

Guardei este segredo no fundo do meu coração. Durante todos esses anos, jamais  ousei revelá-lo a vivalma. Até mesmo dos mortos, aqueles que tudo veem, eu mantive  sigilo. Mas sinto que minha hora derradeira está chegando e não encontro razão alguma  para adentrar o outro mundo, desconhecido e temeroso, mantendo esse silêncio que gritou  nos ouvidos do meu coração por tantos anos. Nestas linhas, rabiscadas com a pressa de  quem não tem tempo a perder e borradas pelas lágrimas de uma lembrança antiga, eu  quero revelar o que ainda faz meu peito implodir em amarga melancolia. 

Lembro como se estivesse vivendo tudo agora, neste precioso segundo. Era uma  manhã clara, sem nuvens, e o vento rodopiava fresco e alegre, acariciando meu rosto com  afagos suaves. Eu acompanhava minha família em mais uma visita à casa dos Alvarengas,  amigos íntimos de quase toda a minha árvore genealógica. Cruzamos a Estrada Real e  nos dirigimos à Vila Rica. 

No meio da balbúrdia e vai-e-vem típico do lugar, onde cavalos, bois e galinhas  disputavam espaço com as pessoas, eu o vi. Seus cabelos longos tocavam os ombros,  voando ao sabor das peraltices do zéfiro. Seus modos aristocráticos eram modelados por  uma vestimenta fina: casaco, colete, calça, sapatos, tudo parecia indicar sofisticação e, ao  mesmo tempo, liberdade.  

Sim, liberdade. Aquele homem andava pela rua como se fosse um pássaro sem  dono, abrindo suas asas e alcançando o mais impossível dos horizontes. Nos meus dezoito  anos de existência, era a primeira vez que eu fitava alguém com admiração e paixão. 

Temendo que algum membro da minha família notasse o meu interesse,  especialmente meu intempestivo pai — que descanse em paz —, tratei de disfarçar da  melhor forma possível. No entanto, aquele homem me magnetizava: sua figura brilhava  como o ouro tão ambicionado pela Coroa portuguesa. Uma ganância que estava  afundando a todos, mergulhando-nos em excessivas taxações. 

Repentinamente, o homem passa por nós e cumprimenta educadamente meu pai.  Em seguida, olha de soslaio para minha mãe, irmãs, tias e, finalmente, para mim. Quando  nossos olhos se encontraram, achei que meu pobre coração fosse parar de bater. Mas não;  forte e corajoso, ele continuou pulsando e bombeando sangue.

Chegamos à residência dos Alvarengas, mas eu não fui capaz de pensar em mais  nada. Apenas o som monocórdio dos sinos das igrejas avisava o passar das horas. Em  meus pensamentos, as notas dedilhadas por dona Carolina Alvarenga no grande piano da  sala sussurravam um lirismo distante. Palavras desconexas se formavam em minha mente: 

“Sinto as asas do tempo, como elas são rápidas. Quando a lua tocar o ponto mais  alto do céu, todas as luzes serão apagadas. Com os pés em chamas eu correrei para a  cama, desejando que você entre nos meus sonhos. Nunca mais olharei para as estrelas do  céu como se elas fossem inimigas ou simples estranhas. ” 

Algo dentro de mim ressoava como um verso. Tudo era pura poesia. Eu estava  apaixonada por um desconhecido. Quando uma de minhas irmãs perguntou o motivo da  minha distração, bocejei um assunto qualquer. Meu segredo estava bem guardado. 

Na sala reservada aos homens, vozes alteradas rasgavam ofensas aos desatinos da  Coroa. Os impostos altíssimos acabariam por destruir a colônia. Era necessário uma  separação completa e total de Portugal.  

Em meio aos gritos, um dos senhores pediu cautela e tranquilidade de ânimos. Se  algum inoportuno ouvisse o que jamais deveria ouvir, eles seriam acusados de traição.  Atentos à realidade da situação, os homens baixaram o tom de voz. Nesse momento, a  porta se abriu e um dos criados veio anunciar que o senhor Tomás António Gonzaga havia  chegado. 

Qual não foi minha absoluta surpresa ao ver que o homem dos meus sonhos era o  mais novo visitante do solar. Recebido efusivamente pelo Sr. Alvarenga, ele foi logo  introduzido aos demais companheiros: 

— Meus caros senhores, este é o jurista e magnífico poeta a quem enderecei meus  mais nobres elogios, sr. Tomás António Gonzaga.  

Consigo lembrar até hoje das mesuras e do burburinho dentro e fora da sala de  reunião masculina. No recanto feminino, nós espiávamos com os ouvidos, atentas e  curiosas ao que se desenrolava. Fiquei com receio de que meu peito me denunciasse: os  batimentos cardíacos pareciam um tambor, rugindo furiosamente naquela salinha de  costuras, linhas e bordados.

Quando nos despedimos, o sr. Gonzaga continuou na sala com a desculpa de que  gostaria de rever a biblioteca particular do anfitrião. Algum tempo depois, eu soube que  ele e mais outros senhores estavam planejando uma revolução para separação total e  definitiva de Portugal. Havia gente de grande poder naquele movimento, assim como  membros da igreja, fazendeiros, profissionais liberais e detentores da elite. 

Meu pai ficou de fora de todos os preparativos, alegando que não tinha filho varão  para substituí-lo nos negócios da família. Porém, no fundo inconfessável de seus  pensamentos, eu sei que ele ficou com medo. Sentimento totalmente diferente do que vi  no rosto do sr. Gonzaga.  

À noite, agarrada aos meus lençóis, imaginei que Tomás — que lindo nome! — me abraçava e cobria minha pele de beijos. Seus lábios seriam como a pena de um pássaro,  leves e fugidios, ou como a brasa quente que atiça o fogo? Infelizmente, eu nunca fui  capaz de saber. 

O plano daqueles senhores foi descoberto, pois havia um traidor entre eles. Um  deles, o sr. Joaquim José da Silva Xavier, conhecido como Tiradentes, de posição humilde  e sem berço, foi condenado à morte por enforcamento. Seu corpo foi desmembrado e sua  cabeça exposta no ponto central de Vila Rica. Nunca poderei esquecer a imagem pavorosa  e desumana, um símbolo de covardia, balançando na praça central como um aviso a quem  tentasse ser livre. 

Soube que o sr. Gonzaga, meu amado Tomás, foi exilado. Também chegou aos  meus ouvidos de que seu amor por Maria Doroteia Joaquina de Seixas, sua ex-noiva e  eterna musa, foi imortalizado em versos lindos, puros, intensos. Lágrimas não pararam  de jorrar de meus olhos por longo tempo, até que eu entendi que não se pode comandar o  coração.  

Por conta das pesadas acusações que culminaram no degredo do poeta, jurista e  inconfidente, o casal foi separado para sempre por um oceano inteiro de distância. Sinto  a dor dos infelizes amantes, assim como sinto a minha própria dor. Uma única vez foi  suficiente para que eu tivesse a mais absoluta certeza de que Tomás António Gonzaga  seguiria eternamente na minha memória. 

Os cabelos, o rosto confiante, o nariz aquilo, o porte e o olhar dele atiçavam minha  imaginação todas as noites. Por questões superiores aos meus desejos, eu casei. Desse 

matrimônio comum, sem paixão ou qualquer migalha de devaneio poético, tive dois  filhos. Fui mãe zelosa e amorosa, esposa fiel, participante virtuosa de uma elite decrépita  e hipócrita. Tudo isso por fora, como um santo do pau oco. Meu verdadeiro ouro brilhava  dentro de mim. 

Hoje, entregando meu ser nos braços da morte, traço nas linhas desta missiva a  verdade do meu coração, repousando-a dentro do baú com todos os meus mais queridos  pertences. Antes que o último suspiro da vida me abandone, falo a quem possa interessar:  “Et in Arcadia ego”. 

Meu adorado Tomás, querido Dirceu que nunca foi meu, eu também vivi na  Arcádia. 

Sua eterna pastora.


Comentários