1° LUGAR – CONTO – PROSA INTERNACIONAL – VIII Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"


Gratidão Eterna

Luísa Maria Ferreira Pinto de Lima
Santa Maria da Feira/Portugal


Aos dez anos, fui trabalhar como criada de quarto, na herdade dos condes da minha terra natal.

Tive muita sorte por não ter ido trabalhar na lavoura. Tendo cama e pão, que mais é que eu queria?! Perguntou-me o meu pai com a sua voz cavernosa, arrastada pelo vinho, ao ver-me choramingar, no dia em que deixei as saias da minha mãe. Antes de ela me levar pela mão à herdade dos condes, fez-me acender uma velinha na saleta e rezar de joelhos três Avé Marias à Nossa Senhora dos Aflitos para agradecer um trabalho tão asseado. Pressenti-lhe até um certo orgulho, como se, de repente, o seu rosto sempre apagado tivesse sido iluminado por um raio de luz.

Fui tratada com carinho na herdade dos condes. Os primeiros anos correram sem sobressaltos, apesar de, no início, eu choramingar pelos cantos com muitas saudades da minha mãe e dos meus irmãos.

De dois em dois meses, os meus patrões permitiam, generosamente, que eu dormisse uma noite em casa. Nos primeiros tempos, era uma alegria. Depois, comecei a sentir que em minha casa escurecia demasiado cedo. A minha mãe precisava de poupar no petróleo. Os condes perceberam, e as minhas visitas a casa começaram a ser mais espaçadas. Com o meu primeiro ordenado, quando fiz quinze anos, comprei uma blusa branca de gola rolê. Não tinha bordados como as da menina Amélia, mas ao menos não estava puída. Foi mais ao menos por essa altura que a menina Amélia, pouco mais velha do que eu, me encontrou desfeita em lágrimas na casa de banho. Um fio de sangue deslizava pelas minhas coxas até aos joelhos. Com o coração a galopar no meu peito, eu pensava que ia morrer. A menina Amélia explicou-me com muita doçura o que era a menstruação e trouxe-me fraldas de pano para eu prender com alfinetes na roupa interior. A partir daí, tornámo-nos cúmplices, numa amizade que foi crescendo de uma forma discreta, quase sigilosa.

Recordo-me de uma pontinha de preocupação nas palavras da dona Clotilde, a mãe da menina Amélia, no dia em que usei as ditas fraldas de pano, pela primeira vez. “Já és mulher, Francisca. Agora juizinho!” Juizinho?! Porquê!? Cogitei eu para os meus botões. O certo é que com juizinho ou sem juizinho, continuei a ouvir os conselhos e confidências da menina Amélia.

O conde costumava reunir-se na biblioteca com uns senhores muito aprumados. Discutiam política, mas a única que podia transpor a porta nessas ocasiões, era eu. Levava-lhes um tabuleiro com vários licores e biscoitos. Ainda tenho na lembrança o olhar de Salazar exposto no quadro da parede. Parecia que espiava os meus passos, enquanto a menina Amélia colava os ouvidos à porta do lado de fora, tentando escutar o que diziam lá dentro. Embora ela quisesse cursar Direito, não lhe permitiam entrar na biblioteca, porque era falta de educação falar de política à frente de uma senhora. Além disso, os pais tinham esperança de que ela abandonasse aquela ideia despropositada de estudar leis. Eu, analfabeta e despolitizada, escutava os desabafos da menina Amélia e enxugava-lhe as lágrimas de raiva, quando estávamos a sós.

A minha adolescência deslizou sem sobressaltos, até ao dia em que a minha mãe me foi buscar à herdade dos condes para eu cuidar de uma tia que se encontrava doente. Eu dava a comida na boca à minha tia e, todas as manhãs, o meu tio colocava um oleado por baixo dela na cama. Depois ele saía do quarto, e eu lavava-lhe o corpo com um pano húmido.

Estas tarefas eram penosas, mas houve uma ocorrência bem pior que se cravou como um agulhão na minha alma.

Numa noite quente de estio, sentei-me num muro, a brincar com as folhas das videiras que serpenteavam o pomar dos meus tios, quando ouvi um ruído inesperado. Era o meu tio que se aproximava a coxear pesadamente. Não sei ao certo o que murmurou junto dos meus ouvidos. Fiquei com a vaga sensação de ter escutado doce ninfa ou algo parecido. Durante muitos anos interroguei-me incessantemente sobre o que teria feito para merecer tão triste memória. O braço repugnante do meu tio cingiu-me a cintura, enquanto os seus lábios ressequidos procuravam avidamente os meus. De repente, a cortar o silêncio excruciante da noite, ouviu-se a voz débil da minha tia, vinda do quarto. O meu tio suspendeu a mão na minha cintura. Num ápice, galguei o muro. Tropecei e caí. Esfolei os joelhos, mas continuei a correr até casa dos meus pais.

Bati, muito de mansinho, à porta da cozinha com receio de acordar os meus irmãos. O meu pai ressonava no quarto e os meus irmãos, enrodilhados uns nos outros, também já dormiam na saleta.

A minha mãe abriu-me a porta, atarantada, com uma vela acesa na mão. Nem reparou nos meus joelhos ensanguentados. Em pânico, contei-lhe o que tinha acontecido. Ela puxou me as tranças como se as amaldiçoasse. “Já tens idade para usares um puxo e te defenderes!”. Depois, mais branda e indolente, acrescentou: “O teu tio comprou um par de sapatos para cada um dos teus irmãos. E quanto ao teu pai, nem um pio, ouviste, Francisca?”.

Eu sabia que os sapatos vinham mesmo a calhar, porque os meus irmãos andavam descalços, mas chorei e implorei, com asco do meu tio. A minha mãe, cabisbaixa, não me deu ouvidos.

Voltei para casa dos meus tios, mas fugi passado pouco tempo. Dormi uma noite ao relento. Tolhida de medo e de frio num início de outono, enrosquei-me no meu casaco coçado e, encostada ao paredão das traseiras da herdade dos condes, entretive-me a observar a lua em forma de foice. Depois dormitei sob o véu da noite. Só as estrelas velaram por mim.

No dia seguinte, mal a névoa da alba da manhã ficou suspensa sobre o rio, fui abanar o sino do portão da frente. A dona Clotilde já tinha outra criada a substituir-me, mas a menina Amélia apiedou-se de mim e conseguiu arranjar-me trabalho, numa fábrica de sapatos. Não lhe foi difícil por ser filha do conde. Aceitaram-me nessa mesma tarde.

“Agora sou gaspeadeira”, disse eu à minha mãe, logo que regressei a casa. O meu pai mirou-me de cima abaixo num misto de admiração e consternação. O trabalho fabril era violento, mas sempre traria alguns trocos para casa. A minha mãe franziu a testa em jeito de quem ia perguntar alguma coisa, mas balbuciou: “Podes levar uma maçã e mais qualquer coisita para o almoço. Logo se vê…”.

Os primeiros tempos de adaptação à fábrica foram difíceis. A dona Gertrudes, a nossa mestra, sentava-se a uma mesa e nós, uma trupe de garotas à volta dela, aprendíamos como se estivéssemos numa escola. Foi preciso muito tempo e treino para aprender a arte de gaspear à mão.

O trabalho decorria desde o nascer ao pôr do sol. Como não havia relógio lá em casa, eu acordava com a sirene da fábrica. Lavava a cara, metia o “dito” almoço numa saca de pano e corria rua acima

Ao fim da tarde, a menina Amélia, aguardava-me a uns duzentos metros do portão da fábrica. Confidenciava-me uma ou outra arrelia com os pais e metia no meu saco de pano restos de comida para eu levar para casa. Era o meu anjo da guarda na terra, disfarçado de longos cabelos acobreados a esvoaçar ao vento. Havia algo de indómito e ao mesmo tempo bondoso, nos olhos fulvos da menina Amélia.

Esta rotina foi interrompida quando ela foi estudar Direito na cidade de Coimbra, à revelia da vontade dos condes, tendo sido a primeira mulher da minha terra a frequentar um curso direcionado única e exclusivamente aos homens.

Por essa altura, eu já usava lenço nos dias de chuva para não ensopar o meu puxo. Quando ela regressava de Coimbra, visitava-me à noite, junto ao portão do nosso quintal. Logo que chegava, acendia um cigarro que nos alumiava como um pirilampo da noite. Era, então, que me contava efusivamente, mas em surdina, que dormia agarradinha ao namorado numa República (casa de estudantes), participava com ele em manifestações contra o regime do governo e distribuía panfletos revolucionários no elétrico, sem dirigir a palavra ao condutor. Finda a distribuição dos panfletos, o condutor parava o elétrico, e ela escapulia-se pelas ruelas da cidade. Eu quase ficava sem fôlego, só de a ouvir. Mas ríamos. Ríamos muito e sonhávamos com uma vida mais justa, sobretudo para as mulheres.

Infelizmente, foi numa tarde soalheira de 1973, que a menina Amélia se despediu precocemente da vida, ao atirar-se do elétrico para o empedrado da estrada. A desconfiança de que o fez, a fugir de algum Pide que viajava no mesmo elétrico, nunca me abandonou. Para quem não sabe ou não se lembra, a PIDE era a polícia internacional e de defesa do Estado.

No funeral da menina Amélia, o sino da igreja repicou num lamento tão profundo que fez estremecer os corações da vila inteira, e eu senti o maior vazio de toda a minha existência. Algum tempo depois, entraram na fábrica dois cavalheiros de fato e gravata. A dona Gertrudes ficou lívida seguindo-os com o olhar, mal os viu trespassar a porta que dava para a secção do trabalho masculino. Levaram-lhe o filho pelas traseiras da fábrica. Eu fiquei siderada, com os pés colados ao chão.

Nos meses que se seguiram, a dona Gertrudes continuou na fábrica sem derramar uma lágrima, mas a lividez do rosto nunca mais a abandonou como se tivesse envelhecido dez anos. Nós permanecíamos em silêncio, porque as paredes tinham ouvidos. Entretanto, deu-se a revolução do 25 de abril de 1974.

Foi numa terça feira solarenga. À hora do almoço, alguém pegou num megafone e gritou: “Houve uma revolução em Lisboa, por isso hoje ninguém trabalha!” Ninguém reagiu, aterrorizados pelo medo. Mas o certo é que os portões da fábrica encerraram. Na mercearia ao fundo da rua, havia um enxame de gente â volta da telefonia. Falava-se até que a guerra no ultramar ia acabar.

Jamais esquecerei o estado de efervescência e de esperança que se viveu nos dias seguintes. Até as andorinhas, surpreendidas e atemorizadas com tanta euforia, procuravam asilo nos beirais. Deslumbrados pela luz daquele abril, os homens davam palmadinhas nas costas uns dos outros com um sorriso rasgado até às orelhas. Nós, as mulheres, cantarolávamos enquanto trabalhávamos.

No fim do mês de maio, o patrão aumentou-nos o salário. A nossa mestra pôde finalmente abraçar o filho e sorria. Só não falava, porque o vício do medo ainda lhe amordaçava a voz. O filho regressou da prisão de Caxias, escanzelado e com poucas falas. A tortura fazia estas coisas a um homem.

Muito mais tarde, chegaram aos meus ouvidos as campanhas de alfabetização do MFA ( movimento das forças armadas que levou a efeito o golpe de Estado desse 25 de abril). Eu estava minimamente politizada, fruto da convivência que tivera com a menina Amélia, mas os outros não. Porém, as danças e as representações teatrais dos estudantes do Porto e de Coimbra foram atraindo magotes de analfabetos. Eu já tinha mais de 20 anos, quando aprendi as primeiras letras.

No dia em que eu e outros estudantes, a maioria homens (as mulheres continuavam submissas aos maridos e às lides domésticas), finalizámos o equivalente ao sexto ano de hoje, professores e alunos fizeram uma festa na escola.

Fui sozinha. Nessa noite vi, pela primeira vez, um polícia à paisana que não pretendia entregar ninguém aos calabouços da tortura. Acompanhava a mãe, uma colega minha viúva e a mais idosa da minha turma. Os olhos vivos e brilhantes do polícia conversaram muito com os meus nessa noite. Creio que as estrelas no céu fizeram o resto. Apaixonei-me. Sim, por um polícia, porque os tempos tinham mudado.

Hoje, na escalada descendente da vida, quando as palavras são insuficientes para expressar o que sinto pelo meu polícia, ficamos de mãos dadas num silêncio infinito. É nesses momentos que ainda ouço as risadas noturnas da menina Amélia, encostada ao portão do meu quintal. A sua bondade e a sua determinação ficaram aninhadas no meu coração, porque há mortos que permanecem vivos na nossa alma como uma gratidão eterna.

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