4° LUGAR – CONTO – PROSA NACIONAL – VIII Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"

 Dois Cisnes


Coracy Teixeira Bessa
Salvador/BA

O choro do recém-nascido calou-se à imposição do mamilo generosamente ofertado pela  mãe. A jovem negra sorriu de prazer à pressão da gengiva desdentada do seu filho. Sobre o  colchonete, sentou-se de pernas cruzadas para usufruir daquele momento de união com o fruto  de seu amor por Damião. Damião que, “entre tapas e beijos”, plantara aquela semente em seu  ventre. Damião, aquele negro atlético, de dentes perfeitos e mãos calejadas pelo lidar com velas,  remos, redes, varas e anzóis, pelas noites e madrugadas adentro. Ela, Sebastiana, Sebá para os  íntimos, era miúda, de membros delicados, mãos de palmas macias, olhos grandes e lábios  carnudos, nariz achatado de narinas frementes e cabelos crespos dóceis às tranças. Este em seu  colo era o primeiro de muitos que viriam, assim pensava. A proximidade das marés enfeitava  com cristais de sal toda a superfície do barraco onde moravam. Por mais que limpasse, Sebá  não conseguia se livrar daquela película que envolvia os poucos móveis e utensílios. Mesmo os  seus lábios, ao encontrar os de Damião, saboreavam o salitre ali depositado. E o seu bebê  também sabia a sal. O mar era o companheiro de morada e labuta para o casal. 

Não muito longe dali, Marcela aguardava a hora para “desembuchar”, como dizia a  vizinha Dona Berenice, que já se acertara com ela para aparar o que viesse daquele ventre  bojudo que prenunciava mais um menino para completar o time de vôlei organizado por Seu  Jacinto, treinador do time de futebol da favela onde moravam. Marcela vivia cansada de pajear  aquela fieira de filhos sem ter nenhuma menina para lhe aquecer o coração com uma ternura  que só filha fêmea consegue produzir, era o que pensava. Jacinto era bom de fazer filho, porém,  do sentimento de ternura ele havia se afastado há muitos anos. Lidava com os filhos como se  comandasse um pelotão de recrutas no quartel. Marcela sentia pena dos meninos submetidos  àquele regime militar. Em seu íntimo desejava que este, que Deus queira seria o último,  conseguisse se rebelar contra a linha dura dominante no seio da família. Diante do espelho  manchado do banheiro Marcela avaliou o seu ventre distendido e calculou que a sua espera não  ultrapassaria o final da semana, confirmando que o parto seria na lua cheia. Desejou que esse  caçula fosse tão alourado como os irmãos e, como eles, tivesse olhos claros. Essa constatação  confirmaria a fantasia que tinha de ser descendente de europeus do Norte. Tal ilusão se baseava  no fato de terem, todos eles, a pele branca, sardenta, os cabelos louros ou ruivos e olhos cinza,  azuis ou esverdeados. Quem sabe, seriam descendente dos famosos Vikings? Marcela gostava  de ficar fantasiando no período do dia em que a meninada estava na escola do bairro, bem ou mal aprendendo alguma coisa. Entre a arrumação da casa e o preparar o almoço, deixava o  pensamento vagar ao som do toca-discos que ela cuidava com muito zelo. Era um dos poucos  prazeres que Jacinto lhe permitia. De sua parte, Jacinto curtia as transmissões de futebol e as  discussões políticas com os amigos nos jogos de gamão ou de cartas, sentados embaixo da  gameleira da pracinha perto de casa, regadas a cervejas que Marcela tinha que manter geladas. Ficava ela encarregada de cuidar da filharada, da casa e do chefe da família. 

Damião partia cedo para a pesca e Sebastiana preparava o de comer com o filhote  pendurado às costas, como vira há algum tempo em um documentário sobre tribos africanas. O  vai e vem pela casa acabava funcionando como um acalento e o bebê dormia tão tranquilo que  fazia gosto. Sempre que podia, a mulher acomodava-se no batente da porta de casa com o  menino no colo e espichava o olhar para a lonjura do mar, enquanto cantarolava modinhas de  última hora ouvidas no radinho de pilha ao seu lado. Damião, cheirando a mar, sal e sol, chegava  e deixava o produto da pesca sobre a bancada da cozinha, entrava no vão que funcionava como  banheiro, tomava um banho ligeiro e gritava: “Sebá! Vem cá, minha nêga!”. E ela sabia que,  desde então, quem mandava na casa e na vida deles era Damião e não ela ou o filhote. Corria a  acomodar a criança no berço improvisado com um caixote de madeira e acorria ao chamado do  seu homem. O homem derrubava-a no velho sofá herdado da sogra e, “entre tapas e beijos”  treinavam fazer um novo bebê. 

Jacinto, impaciente, questionava Marcela: “E aí, mulher! Quando vai finalmente parir  esse moleque? Eu tenho que me programar para a final do campeonato e não quero  atrapalhação no dia da disputa! O time do Morro da Formiga vem ameaçando derrubar o meu  time, mas não vão conseguir, tu vai ver!”. Marcela, pachorrenta, sorria e dizia: “Nessa hora  quem manda é ele, Jacinto! Nem tu nem eu...”. E lá ia ela tirar o jantar do fogo, servir a comida  para os filhos já sentados à mesa e, com dificuldade, acomodar-se com eles e o senhor de suas  vidas. Em silêncio, todos aguardavam o questionário infalível de todas as noites pois Jacinto  fazia questão de saber tudo sobre o aproveitamento dos garotos na escola. E colocava-os à prova  fazendo-lhes perguntas relacionadas ao dia-a-dia, mas, sobretudo, questões sobre esportes,  campeonatos e placares dos jogos. Depois, cabeceado de sono, os garotos iam em fila a caminho  das camas onde, talvez, conseguissem sonhar com dias melhores. 

O primeiro encontro dos dois recém-nascidos se deu junto à pia batismal. Apesar de  Damião ser adepto do terreiro de Mãe Joaninha, não botou obstáculo ao pedido de Sebastiana  (devota de São Joaquim, o santo esquecido pelos católicos, apesar de ter sido o pai da Virgem Maria) para batizar o seu filho na igreja cristã. Por sua vez, o caçula de Marcela e Jacinto  cumpriria o ritual tradicional da família. Desde o primeiro filho eles, seguindo a orientação do  Padre Salustiano, levavam ao batismo a criança antes de completar seis meses de idade. Chamou a atenção de alguns o contraste entre o negro Daniel e o branco Samuel chorando  ambos ao susto que lhes causou a água fria despejada em suas cabeças pelo velho pároco. Somente voltaram a se encontrar por volta dos dez anos de idade. Encontro fortuito, não  planejado, que marcaria os seus destinos. Curiosamente, o que os levara até ali fora o desejo  insuspeitado de dançar. Não qualquer dança, mas, a dança clássica. Ambos, alvoroçados com a  notícia de que haveria uma seleção para a escolha de candidatos ao curso internacional de  companhia russa, burlaram a vigilância paterna e foram ao Centro Comunitário onde seria feita  a seleção. Ao se conhecerem, a similaridade da reação paterna de ambos os aproximou ainda  mais, como se buscando apoio para a resistência à negação de seus pais ao seu desejo. Não  foram selecionados, mas continuaram a frequentar as aulas de dança propiciadas por Dona Têtê,  na laje de sua casa, no alto do morro. 

Dona Têtê era uma galega por volta dos sessenta anos que ninguém sabia como viera  parar naquela favela. O fato é que ali se estabelecera há vários anos ensinando dança a quem  quisesse aprender. Não cobrava de ninguém, porém agradecia qualquer oferta vinda de seus  alunos: uns mariscos apanhados na maré baixa, uma penca de bananas da bananeira dos fundos  do campo de futebol, um caminho de mesa bordado pela avó de algum aluno e tantas outras  delicadezas que viessem a lhe presentear. O passado de Têtê era um mistério. No início, o diz-que-me-diz corria solto morro acima e morro abaixo e, depois, começaram a esquecer a  bisbilhotice e aceitaram-na com naturalidade. Em sua casa vieram se encontrar os garotos  Daniel e Samuel escapados das aulas na escola do bairro. 

Muito esforçados, Samuel e Daniel não cabulavam as aulas de Dona Têtê.  Memorizavam também as histórias que ela contava sobre os espetáculos de dança nos famosos  teatros europeus, curiosidades sobre a vida de muitos dançarinos clássicos famosos, como  Nureyev e Baryshnicov, entre outros e fatos importantes da História mundial. Embalados pela  voz de Dona Têtê, os exercícios exaustivos do balé iam moldando os músculos dos  adolescentes, preparando-os para voos mais altos, em suas vidas. 

A adolescência dos garotos discorreu rápida e lhes trouxe a descoberta de sentimentos  desconhecidos para ambos. A proximidade física e os planos irmanados em relação ao futuro  os levaram ao conhecimento mútuo aprofundado pelos anos seguintes. A descoberta de cada um deles como objeto de amor do companheiro trouxe-lhes um deslumbramento que se traduziu  em uma realização quase perfeita de seus gestos, ritmo e atuação no balé que estavam a ensaiar:  O Lago dos Cisnes. 

Dona Têtê conseguira com o consulado de seu país o patrocínio para uma apresentação  dos seus alunos no auditório do Clube de Esporte do Alto da Glória. A animação da garotada  aumentava à medida que se aproximava o dia do espetáculo. Daniel e Samuel caprichavam nos  ensaios, mais do que os demais. O papel de protagonistas foi determinado pela professora:  Samuel seria o Cisne Branco e Daniel, o Cisne Negro. Àquela altura, tanto Damião quanto  Jacinto haviam desistido de convencer os seus filhos a desistirem da pretensão de serem  bailarinos clássicos e, bem lá no fundo de suas almas, já começavam a sentir orgulho dos filhos  que tinham. 

O dia da apresentação amanheceu nublado. Um vento frio circulava pelas vielas da  favela querendo desanimar os possíveis espectadores do espetáculo da Dona Têtê. Em casa de  Damião, Sebá e os filhos menores se preparavam para irem ver o primogênito praticando seus  “voos de pássaro”, como Damião definira o papel do filho mais velho. Em casa de Jacinto, a  expectativa era enorme. O pai de família rezava para não ser decepcionado pelo filho que fugira  ao seu controle e ousava trilhar caminho jamais imaginado por ele. Marcela é que estava  eufórica: se os demais filhos não dessem para nada, bastava a ela o orgulho de ter um artista na  família. 

O Lago dos Cisnes de Dona Têtê provou ser o que se esperava: um espetáculo amador  levado a cabo pelo empenho de uma mulher e seus alunos. Um espetáculo digno de aplauso. 

Fechadas as cortinas, o público se dispersando, as famílias dos dançarinos se  parabenizando e se despedindo, Samuel e Daniel desciam as escadas do clube quando um grupo  de arruaceiros avançou para os jovens ainda vestidos de cisnes. Daniel institivamente abraçou  Samuel na tentativa de protege-lo. “Bichas! Viados!”, gritaram os desconhecidos e desferiram  uma série de disparos de arma de fogo que os atingiram e ceifaram suas vidas.

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