Dois Cisnes
O choro do recém-nascido calou-se à imposição do mamilo generosamente ofertado pela mãe. A jovem negra sorriu de prazer à pressão da gengiva desdentada do seu filho. Sobre o colchonete, sentou-se de pernas cruzadas para usufruir daquele momento de união com o fruto de seu amor por Damião. Damião que, “entre tapas e beijos”, plantara aquela semente em seu ventre. Damião, aquele negro atlético, de dentes perfeitos e mãos calejadas pelo lidar com velas, remos, redes, varas e anzóis, pelas noites e madrugadas adentro. Ela, Sebastiana, Sebá para os íntimos, era miúda, de membros delicados, mãos de palmas macias, olhos grandes e lábios carnudos, nariz achatado de narinas frementes e cabelos crespos dóceis às tranças. Este em seu colo era o primeiro de muitos que viriam, assim pensava. A proximidade das marés enfeitava com cristais de sal toda a superfície do barraco onde moravam. Por mais que limpasse, Sebá não conseguia se livrar daquela película que envolvia os poucos móveis e utensílios. Mesmo os seus lábios, ao encontrar os de Damião, saboreavam o salitre ali depositado. E o seu bebê também sabia a sal. O mar era o companheiro de morada e labuta para o casal.
Não muito longe dali, Marcela aguardava a hora para “desembuchar”, como dizia a vizinha Dona Berenice, que já se acertara com ela para aparar o que viesse daquele ventre bojudo que prenunciava mais um menino para completar o time de vôlei organizado por Seu Jacinto, treinador do time de futebol da favela onde moravam. Marcela vivia cansada de pajear aquela fieira de filhos sem ter nenhuma menina para lhe aquecer o coração com uma ternura que só filha fêmea consegue produzir, era o que pensava. Jacinto era bom de fazer filho, porém, do sentimento de ternura ele havia se afastado há muitos anos. Lidava com os filhos como se comandasse um pelotão de recrutas no quartel. Marcela sentia pena dos meninos submetidos àquele regime militar. Em seu íntimo desejava que este, que Deus queira seria o último, conseguisse se rebelar contra a linha dura dominante no seio da família. Diante do espelho manchado do banheiro Marcela avaliou o seu ventre distendido e calculou que a sua espera não ultrapassaria o final da semana, confirmando que o parto seria na lua cheia. Desejou que esse caçula fosse tão alourado como os irmãos e, como eles, tivesse olhos claros. Essa constatação confirmaria a fantasia que tinha de ser descendente de europeus do Norte. Tal ilusão se baseava no fato de terem, todos eles, a pele branca, sardenta, os cabelos louros ou ruivos e olhos cinza, azuis ou esverdeados. Quem sabe, seriam descendente dos famosos Vikings? Marcela gostava de ficar fantasiando no período do dia em que a meninada estava na escola do bairro, bem ou mal aprendendo alguma coisa. Entre a arrumação da casa e o preparar o almoço, deixava o pensamento vagar ao som do toca-discos que ela cuidava com muito zelo. Era um dos poucos prazeres que Jacinto lhe permitia. De sua parte, Jacinto curtia as transmissões de futebol e as discussões políticas com os amigos nos jogos de gamão ou de cartas, sentados embaixo da gameleira da pracinha perto de casa, regadas a cervejas que Marcela tinha que manter geladas. Ficava ela encarregada de cuidar da filharada, da casa e do chefe da família.
Damião partia cedo para a pesca e Sebastiana preparava o de comer com o filhote pendurado às costas, como vira há algum tempo em um documentário sobre tribos africanas. O vai e vem pela casa acabava funcionando como um acalento e o bebê dormia tão tranquilo que fazia gosto. Sempre que podia, a mulher acomodava-se no batente da porta de casa com o menino no colo e espichava o olhar para a lonjura do mar, enquanto cantarolava modinhas de última hora ouvidas no radinho de pilha ao seu lado. Damião, cheirando a mar, sal e sol, chegava e deixava o produto da pesca sobre a bancada da cozinha, entrava no vão que funcionava como banheiro, tomava um banho ligeiro e gritava: “Sebá! Vem cá, minha nêga!”. E ela sabia que, desde então, quem mandava na casa e na vida deles era Damião e não ela ou o filhote. Corria a acomodar a criança no berço improvisado com um caixote de madeira e acorria ao chamado do seu homem. O homem derrubava-a no velho sofá herdado da sogra e, “entre tapas e beijos” treinavam fazer um novo bebê.
Jacinto, impaciente, questionava Marcela: “E aí, mulher! Quando vai finalmente parir esse moleque? Eu tenho que me programar para a final do campeonato e não quero atrapalhação no dia da disputa! O time do Morro da Formiga vem ameaçando derrubar o meu time, mas não vão conseguir, tu vai ver!”. Marcela, pachorrenta, sorria e dizia: “Nessa hora quem manda é ele, Jacinto! Nem tu nem eu...”. E lá ia ela tirar o jantar do fogo, servir a comida para os filhos já sentados à mesa e, com dificuldade, acomodar-se com eles e o senhor de suas vidas. Em silêncio, todos aguardavam o questionário infalível de todas as noites pois Jacinto fazia questão de saber tudo sobre o aproveitamento dos garotos na escola. E colocava-os à prova fazendo-lhes perguntas relacionadas ao dia-a-dia, mas, sobretudo, questões sobre esportes, campeonatos e placares dos jogos. Depois, cabeceado de sono, os garotos iam em fila a caminho das camas onde, talvez, conseguissem sonhar com dias melhores.
O primeiro encontro dos dois recém-nascidos se deu junto à pia batismal. Apesar de Damião ser adepto do terreiro de Mãe Joaninha, não botou obstáculo ao pedido de Sebastiana (devota de São Joaquim, o santo esquecido pelos católicos, apesar de ter sido o pai da Virgem Maria) para batizar o seu filho na igreja cristã. Por sua vez, o caçula de Marcela e Jacinto cumpriria o ritual tradicional da família. Desde o primeiro filho eles, seguindo a orientação do Padre Salustiano, levavam ao batismo a criança antes de completar seis meses de idade. Chamou a atenção de alguns o contraste entre o negro Daniel e o branco Samuel chorando ambos ao susto que lhes causou a água fria despejada em suas cabeças pelo velho pároco. Somente voltaram a se encontrar por volta dos dez anos de idade. Encontro fortuito, não planejado, que marcaria os seus destinos. Curiosamente, o que os levara até ali fora o desejo insuspeitado de dançar. Não qualquer dança, mas, a dança clássica. Ambos, alvoroçados com a notícia de que haveria uma seleção para a escolha de candidatos ao curso internacional de companhia russa, burlaram a vigilância paterna e foram ao Centro Comunitário onde seria feita a seleção. Ao se conhecerem, a similaridade da reação paterna de ambos os aproximou ainda mais, como se buscando apoio para a resistência à negação de seus pais ao seu desejo. Não foram selecionados, mas continuaram a frequentar as aulas de dança propiciadas por Dona Têtê, na laje de sua casa, no alto do morro.
Dona Têtê era uma galega por volta dos sessenta anos que ninguém sabia como viera parar naquela favela. O fato é que ali se estabelecera há vários anos ensinando dança a quem quisesse aprender. Não cobrava de ninguém, porém agradecia qualquer oferta vinda de seus alunos: uns mariscos apanhados na maré baixa, uma penca de bananas da bananeira dos fundos do campo de futebol, um caminho de mesa bordado pela avó de algum aluno e tantas outras delicadezas que viessem a lhe presentear. O passado de Têtê era um mistério. No início, o diz-que-me-diz corria solto morro acima e morro abaixo e, depois, começaram a esquecer a bisbilhotice e aceitaram-na com naturalidade. Em sua casa vieram se encontrar os garotos Daniel e Samuel escapados das aulas na escola do bairro.
Muito esforçados, Samuel e Daniel não cabulavam as aulas de Dona Têtê. Memorizavam também as histórias que ela contava sobre os espetáculos de dança nos famosos teatros europeus, curiosidades sobre a vida de muitos dançarinos clássicos famosos, como Nureyev e Baryshnicov, entre outros e fatos importantes da História mundial. Embalados pela voz de Dona Têtê, os exercícios exaustivos do balé iam moldando os músculos dos adolescentes, preparando-os para voos mais altos, em suas vidas.
A adolescência dos garotos discorreu rápida e lhes trouxe a descoberta de sentimentos desconhecidos para ambos. A proximidade física e os planos irmanados em relação ao futuro os levaram ao conhecimento mútuo aprofundado pelos anos seguintes. A descoberta de cada um deles como objeto de amor do companheiro trouxe-lhes um deslumbramento que se traduziu em uma realização quase perfeita de seus gestos, ritmo e atuação no balé que estavam a ensaiar: O Lago dos Cisnes.
Dona Têtê conseguira com o consulado de seu país o patrocínio para uma apresentação dos seus alunos no auditório do Clube de Esporte do Alto da Glória. A animação da garotada aumentava à medida que se aproximava o dia do espetáculo. Daniel e Samuel caprichavam nos ensaios, mais do que os demais. O papel de protagonistas foi determinado pela professora: Samuel seria o Cisne Branco e Daniel, o Cisne Negro. Àquela altura, tanto Damião quanto Jacinto haviam desistido de convencer os seus filhos a desistirem da pretensão de serem bailarinos clássicos e, bem lá no fundo de suas almas, já começavam a sentir orgulho dos filhos que tinham.
O dia da apresentação amanheceu nublado. Um vento frio circulava pelas vielas da favela querendo desanimar os possíveis espectadores do espetáculo da Dona Têtê. Em casa de Damião, Sebá e os filhos menores se preparavam para irem ver o primogênito praticando seus “voos de pássaro”, como Damião definira o papel do filho mais velho. Em casa de Jacinto, a expectativa era enorme. O pai de família rezava para não ser decepcionado pelo filho que fugira ao seu controle e ousava trilhar caminho jamais imaginado por ele. Marcela é que estava eufórica: se os demais filhos não dessem para nada, bastava a ela o orgulho de ter um artista na família.
O Lago dos Cisnes de Dona Têtê provou ser o que se esperava: um espetáculo amador levado a cabo pelo empenho de uma mulher e seus alunos. Um espetáculo digno de aplauso.
Fechadas as cortinas, o público se dispersando, as famílias dos dançarinos se parabenizando e se despedindo, Samuel e Daniel desciam as escadas do clube quando um grupo de arruaceiros avançou para os jovens ainda vestidos de cisnes. Daniel institivamente abraçou Samuel na tentativa de protege-lo. “Bichas! Viados!”, gritaram os desconhecidos e desferiram uma série de disparos de arma de fogo que os atingiram e ceifaram suas vidas.
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