3° LUGAR – CONTO – PROSA NACIONAL – VIII Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"

O delicado som do amor


Carlos Brunno Silva Barbosa
Valença/RJ

Antero ouviu sua mãe alertar que sua amiga Marisa havia chegado, mas mal se mexeu  do sofá, nem desligou o videogame. Apenas seus lábios se moveram: 

- Manda ela entrar e vir pra sala, mãe! - falou alto sem tirar os olhos da tela; o chefão  daquela fase seguia detonando seu life, eita fase difícil de passar. 

Ouviu sua mãe lembrar Marisa que ela já era da casa, pra ficar à vontade, etc. e tal. Mais  um golpe especial do adversário e o monstro já detonou mais da metade do seu life. Sentiu a  sombra de Marisa às suas costas: 

- E aí, Ante, ainda tá nessa? Precisa sair da toca; tô cansada de ficar respondendo pro  povo de você; é hora de... Nossaaaaa! Da última vez que eu tive aqui você já tava nesse jogo.  Continua nessa desde a semana passada? 

Antero ouviu tudo sem se virar. Outra pancada e o monstro urrou vitorioso. Na tela, a  interrogação “Continue?” e os dez segundos em contagem regressiva. Colocou o console de  lado, desconsolado, deixou o tempo passar e finalmente virou-se de soslaio para Marisa: 

- Não consigo passar dessa fase... - Marisa não diz nada, como se tivesse dúvida se  Antero falava com ela ou se desabafava consigo mesmo. Na tevê, o corpo do herói jazia no  solo pixelizado, enquanto o GAME OVER cobria mais da metade da tela. Antero finalmente  encarou Marisa. Ela cortara o cabelo bem curtinho; ele reparou, mas não falou. Antes que se  fizesse uma pausa muito reveladora, Antero continuou – Mas e aí? O que conta de novo? 

- Eu trouxe um lance novo pra gente ouvir, coisa boa – ela respondeu, batendo  levemente na bolsa – Foi lançado há pouco, acompanhei na Showbiju; comprei agorinha na  Loja do Renê, custou quase um rim, papai vai me matar se souber que gastei quase metade da  mesada com esse CD. Mas acho que vale a pena. - Os olhos de Marisa brilhavam, ela ficava  ainda mais linda quando estava empolgada, Antero balançou a cabeça levemente como se  espantasse as divagações. Marisa talvez não tivesse notado, pois já remexia na bolsa pra pegar  o tal CD. - Nem tirei ele do plástico ainda. Vamos ouvir juntos? - quando ergueu o rosto e  segurava em sua mão o objeto procurado, Antero já estava de pé, de frente pra ela. 

Passou o CD para Antero. Era um álbum de luxo. Na capa, um eletrocardiograma com  os escritos “O delicado som do amor”. Antero parecia cético com o valor estético daquela obra. - Sei lá, Mari, será que é bom? 

Recebeu um leve tapa no peito. 

- Qualé, Antero! É o último álbum da banda Eros Elétrico, gravado antes do Gustavo Palestino morr... - Marisa parecia mastigar o verbo que encerrava a sentença. Seguiu  atabalhoada - ... partir. Parece que o Gustavo deixou um monte de coisa gravada; o João Estrada  juntou tudo, a Showbiju pagou maior pau, matéria longa, cinco estrelas na crítica especializada e taí, cara, esse álbum é ouro, tenho certeza; vai julgar o troço pela capa, qualéé? 

- Ok, ok – Antero ainda estava cético, mas concordaria com qualquer coisa desde que  Mari pausasse aquela tempestade de frases apressadas; ela ficava extremamente feroz e quase  insuportável quando se tornava advogada de defesa de alguma causa ou de algo. Antero já  perdera a conta das vezes nesses 2 anos de amizade que teve seus pontos de vista massacrados  pelos argumentos dela, mas, diferente daquele maldito monstro chefão daquela fase que ele  não conseguia passar, da Mari ele sempre perdia com sádico prazer. - Vamos lá para o quarto  ouvir essa bagaça - Mari fez bico. Antero achou graça. Falou alto sem tirar os olhos de Mari;  como ela ficava mais gracinha quando fazia ar de contrariada - Mãe, eu tô indo pro quarto com  a Mari. A gente vai ouvir um CD novo que ela trouxe, ok? 

- Tá, mas tira esse videogame da minha tevê que eu não sei desligar essa coisa não e  depois fico toda enrolada pra assistir a minha novela; tá quase na hora – veio falando Dona  Iolanda, vindo da cozinha para a sala – Ainda bem que você veio, menina, senão o Antinho - nossa, como Antero odeia quando sua mãe o chama de “Antinho”! - senão o Antinho não sai  desse videogame, fica o dia inteiro nesse jogo e não me deixa ver nada na tevê. Ah, não quer  nada, uma água, um café? - Marisa balançou negativamente a cabeça. Dona Iolanda se virou

para Antero. Fez ar de brava. Era notável a expansão de suas olheiras; será que andou chorando  escondida de novo? - E nada de som muito alto, hein, Antinho! Vocês, jovens, parecem que  são surdos. E depois o chato do vizinho vem e quem tem que escutar sou eu. Além disso, nem  consigo ouvir a novela direito nem no volume máximo quando você coloca o som nas alturas,  rapazinho. Muito juízo, hein! - a fala ambígua e o olhar inquisitivo de Dona Iolanda espetaram ora Antero, ora Marisa. E aquela olheira acentuada; será que ela andou chorando escondida de  novo, será que eles repararam? Depois do ar bravo, o sorriso de graça meio amarga e a retirada  estratégica - Ai, tenho que terminar de arrumar a cozinha antes da novela começar. Fiquem à  vontade, dá licença... 

Antero e Marisa se entreolharam, toda mãe é meio doida, né, e todas parecem conhecer  a fórmula exata para deixar dois jovens de dezesseis anos completamente encabulados.  - Simbora ouvir essa bagaça, Mari – chamar o CD novamente de bagaça foi  evidentemente proposital pra provocar o biquinho de Mari. 

- Affe, Ante, como você é prego; vai ouvir o som e depois vai se ajoelhar aos meus pés,  me chamando de deusa das descobertas e pedindo perdão pelo sacrilégio! - o comentário  brincalhão de Marisa se desenhou meio malicioso na cabeça de Antero, mas ele disfarçou.  Viaja não, irmão! Bora ligar o som. 

- Rasga o plástico, Mari, afinal, o CD é seu. - de frente pro aparelho de som, Antero  estendeu o CD para Marisa sem se voltar completamente para ela. 

- Pode rasgar você, Ante; não tenho dessas neuras, cê sabe. Hum... Você não falou nada  do meu cabelo... Não reparou?... Não gostou? 

Antero fixou o olhar para o aparelho de som, rasgou o plástico do CD, nossa, meia hora  pra rasgar essa porr...caria! Ele reparou sim; talvez até a Mari tenha percebido que ele reparou.  Então o que responder? 

- É... Reparei sim... gostei... - a voz de Antero lutova contra as suas cordas vocais; por  que, de vez em quando, é tão difícil falar quando se tem dezesseis anos e um monte de coisa  inexprimível pra dizer? - É, é que você foi falando do CD, estava tão empolgada, eu não quis...  E... você cortou bem curto, né... Ficou diferente... Mas ficou muito bom... Mas... não foi  porquê... Ficou muito bom...- Liga logo o som, bota o CD, foco no som, melhor não encarar a  Marisa agora, talvez Antero pensasse nisso (ou seria apenas o seu inconsciente?) - É... a  introdução dessa primeira faixa tá boa. É, Mari, acho que você acertou mais uma vez. - Antero  se virou e encarou Marisa, com devida distância, talvez fosse mais seguro assim. Ele sorriu e  torceu pra que o sorriso não pareça tão patético para Marisa quanto o era para sua imagem de  si, 

- Ah, Ante, quando foi que eu errei? Eu sempre acerto, pode admitir! O que seria de  você se não fosse meu bom gosto? - o sorriso aberto de Mari o tranquilizou. A memória do gosto de sangue na garganta que o chateava até pouco pareceu até uma lembrança antiga, apesar  de continuar ali bem gritante em seu pescoço. - Ah, Ante, se não fosse essa sua amiga aqui, ainda estaria ouvindo aquela porcaria de Necrotério Maldito sem nenhuma melodia. 

- Ah, Mari, você curtia também; pô, eles não eram tão ruins assim! - Antero se fazia de  ofendido, mas sabia que Mari estava certa, Mari está sempre certa, ah, que raiva gostosa lhe  dava chegar a essa conclusão. Antero folheou o encarte do CD, aparentemente tão brega, com  aqueles eletrocardiogramas, ao mesmo tempo tão instigante (estar delirando?). 

- Ah, era sim, Ante! Nossa, sente o som! Tá sentindo? 

Antero leu o nome da primeira faixa: “Pouso na lua”. Após a longa introdução, com  um solo de violão quase inaudível, o som deste instrumento foi aumentando, juntamente com  a entrada de outros instrumentos, num crescente, como no clássico “Bolero”, de Ravel. Uau, a  voz de Gustavo Palestino parecia flutuar no espaço sonoro. 

Mari se aproximou num movimento dançante meio lento e, ao mesmo tempo, agitado  (como ela consegue?), enquanto os ouvidos de Antero aterrissavam nos versos e na melodia do  “Pouso na lua”. Por um momento, Antero fechou os olhos. Se não fosse o gosto desagradável  de sangue na boca, talvez a viagem fosse completa. 

Antero aterrissou o corpo aos pés da cama. Marisa o acompanhou. E ficaram ali ouvindo  o som, lado a lado, como sempre faziam.  

- Engraçado a primeira faixa de um álbum chamado “O delicado som do amor” se  chamar “Pouso na lua”, né, Mari? 

- Por quê? 

- Sei lá, eu pensaria em “Pouso em Vênus”, não em “lua”. 

- Eita. Por quê, Ante? 

- Pensa nas aulas de História, aqueles lances de mitologia grega. Vênus é a deusa do  amor, né? 

- Boa, Ante, mas... sei lá, tem lua de lua de mel também, né, tá relacionado com amor  também, não acha? 

- É, deve ser... Não havia pensado nisso...Cê é safa, Mari... 

Esses papos aleatórios sempre distraíam Antero, por isso a companhia de Mari lhe era  tão agradável. E talvez a presença dela lhe fosse mais que agradável... Música boa, boa  companhia, tudo poderia ser perfeito, se não fosse aquela fadiga muitas vezes acima do normal,  o gosto de sangue na boca. E o corte novo de cabelo de Marisa tão curto (o que significava?) e  Antero achou que reparara que ela já reparara na mancha no braço esquerdo dele (parece uma  cratera da lua, né? - ele poderia ter perguntado e ela certamente ficaria meio sem graça; ainda  bem que não perguntou). Antero achou que ela reparara, mas não falara nada, melhor assim,  deixa o som seguir, nós dois aqui, como sempre foi. Mas, com certeza, ela reparara. 

A segunda faixa, “Exploração”, parecia começar hesitante, com tons altos e baixos, os  instrumentos pareciam se confrontar e estranhamente se harmonizar, emendados pela voz grave  e melancólica de Gustavo Palestino. 

- Essa é bem estranha, mas que louco, né, Ante, é boa, também gostei... - Sim, loucona, né? Mas também gostei... 

- É... Ante, escuta... 

- Tô escutando, Mari, tamos escutando, né - Antero tentou fazer um acordo de sigilo  com os olhos de Mari, mas Marisa olhou inadvertidamente pra baixo. 

- É... hã... a sessão... a sua sessão... é assim que chamamos, né... a sua sessão de quimio  começa depois de amanhã, né... 

Derrota. A fadiga dobrada, o gosto de sangue na boca, Antero não sabia se curtira mesmo a segunda canção do CD, pô, Mari, que papo chat... que droga, Mari! - É, Mari...A quimioterapia começa depois de amanhã... O médico chama de primeiro  ciclo... parece que serão três... aí... sei lá... 

- É que... eu queria saber... você tá... você vai ficar bem, né? Eu queria... quer dizer...  eu tô aqui... cê vai ficar bem... 

- É... sei lá... acho que tô... vou ficar bem... 

“Exploração” parecia um loop de altos e baixos, uma alucinação de harmonia com  distorção ou talvez estivessem todos viajando no som. Gustavo Palestino devia estar muito  chapado quando compôs essa doideira. A terceira faixa, “Adaptação” parecia mais tranquila,  mais básica, mais pé (ou som?) no chão. 

- Sim, Ante, você vai ficar bem... eu sei... 

- Putz, Mari, tá parecendo um disco arranhado... 

Recebeu o tradicional leve tapa no peito. 

- Ah, Ante, seu prego! Não posso nem falar algo sério que você entra nessa!..- Marisa  hesitava; talvez não devesse ficar batendo no peito dele, por mais leve que batesse... - Você é  importante pra mim, tá... E pode se abrir, tá... eu tô aqui... 

- E dá-lhe disco arranhado... - Antero também hesitava; até quando poderia enganá-la  ou se enganar? - É... Mari... deixa eu... é... perguntar... Vo...você não cortou o cabelo porque  eu vou fazer... 

- Pode parar, ô centro do mundo. É claro que não! - é claro que a última frase soou  totalmente falsa, por mais que Marisa, por dentro, jurasse que sua experiência em duas peças 

escolares lhe garantisse uma atuação irretocável. - Eu cortei pra ficar igual àquela mina daquele  filme do Massterrix, ah, aquela, cê sabe, né... Mas... hã... eu gosto muito de você, tá? É... Puxa!  Essa é bem chiclete, né? - A balada singela, “Compromisso”, quarta faixa do CD,  desembaraçou Marisa e embalou os silêncios seguintes dos dois jovens. Talvez um deles, ou  quase que certamente os dois sonhassem que estavam dançando juntos, coladinhos, em alguma  quase-lua de Vênus. 

Depois de ouvirem “Dinâmica da união” e “Apego”, Marisa declarou, antecipadamente  e de forma peremptória, que “O delicado som do amor” era, com toda certeza, o melhor álbum  de todos os tempos de uma banda brasileira, talvez um dos dez melhores do mundo e olha que  só ouviram a metade do CD (o restante ficaria para o dia seguinte). Antero não estava tão  convicto daquela sentença artística, mas concordou com ela, afinal, se a contrariasse, com  certeza, perderia o embate crítico-musical mais uma vez. 

- Vamos ouvir esse CD por muito tempo, Ante, até arranhar. 

- Ok, Mari, ok – Antero concordou. Melhor não contrariar malucas lindas com posições  mais firmes que as suas. 

Já anoitecia, Marisa se despediu de Dona Iolanda e de Antero e se foi. 

Antes de ir dormir, ignorando o protesto da mãe e contra toda fadiga e cansaço, Antero ligou o videogame e jogou mais uma vez. Apesar do life à beira da ruína, finalmente derrotou o monstro e passou de fase. Sorriu. Mari estava certa, Mari está sempre certa, ah, que esperança repentina e bonita lhe beijou delicadamente os lábios quando chegou nessa conclusão.


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