2° LUGAR – CONTO – PROSA INTERNACIONAL – VIII Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"


No depósito do esquecimento


Sílvio Manuel Costa e Silva
Pombal/Portugal


A tarde parece uma lareira com chama ligada. Os cães, mergulhados na sombra, esticam a preguiça e o meu netinho senta-se no degrau, olha para Cerqueda, que é um lugar que olha para o lugar do Cosme, e pergunta-me, “Avô, como está a tua memória?”, “Vive um dia enublado”, “Um dia enublado? O que é que isso significa?”, “Significa uma fotografia desbotada”, “Vou colorir a tua memória”, “Não consegues”, “Claro que consigo. E vou provar-te”.

Enquanto o meu netinho entra em casa, o Rusco, o cãozinho que esburacou paredes, destruiu livros e mastigou a mesa na semana passada, senta-se ao pé da torneira e olha para mim, “Não mereces beber”, por vê-lo a saborear a tristeza, fico com dores no peito. Por isso saio da cadeira e, com gestos lentos, que só os velhos sabem executar, rodo o manípulo, “Bebe com calma”, quando ele apaga o deserto, regresso à cadeira e olho para o meu netinho, que passa pela porta, desce os degraus e estaciona o sorriso, “Avô, este comprimido vai colorir a tua memória”, pego no bilhete, que é papel em forma de rectângulo, e sinto nos olhos um dia de chuva, porque escureço o esquecimento, “Estás a ver, avô. Consegui colorir a tua memória”, “É verdade. Estou impressionado”, faço dos lábios um ramo de flores, “Queres conhecer a história do bilhete?”, “Quero”, “Há muito, muito tempo, era eu uma criança, liguei a televisão e ouvi uma música que parecia martelos a malhar nas pessoas”, “Martelos a malhar nas pessoas? Isso cheira-me a música maluca”, “Muito maluca, netinho, que eu passei a ouvir todos os dias”.

O helicóptero, grande e gordo, passa por nós. Ao fundo, perto das casas, há línguas de fogo que procuram morder os pássaros e há carros que as chicoteiam com água. Fico cabisbaixo. Faço das palavras a voz do insulto. Depois contínuo com a história. Certo dia, as galinhas, fartas da música, desapareceram da capoeira. A vizinha e o marido foram ter com a minha mãe, “O teu menino precisa de bofetadas”, a minha mãe não ripostou, nem distorceu o rosto. Foi apenas o que sempre foi: uma pétala a mergulhar no mar, “O meu menino está na idade das asneiras”, a vizinha, que ajudava o marido a produzir pessoas de madeira, não concordou. Mas não disse frases em forma de arma, “As galinhas eram minhas amigas”, “Amigas? Avô, confessa, a vizinha tinha o juízo avariado”.

O Rusco, com a língua fora de casa, deita-se na pedra como quem pousa o cansaço. Acaricio-lhe o lombo, “Amanhã vais mastigar a cadeira da sala”, ele olha para mim. Faz da cauda um aplauso. E eu sou uma criança, que sorri do imprevisto, “Certa manhã, a minha mãe disse-me que depois do jantar íamos ouvir uma fadista. Fiquei triste, pior do que um dia de chuva, porque achava que o fado só entristecia os olhos. Por isso, de tarde, deitei o silêncio e procurei nos pássaros uma forma de voar. Quando a noite acordou, entrei no carro, com cinzas no rosto. A minha mãe não me disse uma palavra, nem esboçou uma sombra. Apenas estacionou o caracol, pediu-me para sair e deu-me o bilhete”, “O bilhete que tens na mão?”, “Sim, netinho. Ao entrar na praça, que tinha guitarras nas árvores, letras nos prédios e luzinhas na igreja, reparei que ninguém falava. A minha mãe, ao aperceber-se disso, disse-me que para saborear o cântico do coração as pessoas precisam de estar preparadas. Fiquei perplexo. Mas no início do espetáculo percebi o sentido da frase. Então chorei um mar revolto. Ela ficou emocionada, com o coração aos saltos, e disse-me que o fado carrega o peso de Portugal. Isso fez-me perceber de que o fado é muito mais do que ter pessoas em palco. É muito mais do que ter palavras a dançar com a guitarra. Isso fez-me perceber que tinha de ser fadista”, “E foste, avô”.

A minha esposa chama-nos, “O lanche está na mesa”, “Já vamos”, enquanto me levanto, digo ao meu netinho que chegou ao fim a história do bilhete, “Avô, quero ser fadista”, “Apoio-te com uma condição”, “Qual”, “Só cantas se o teu peito não estiver dorido”, “Explica-te”, “Quem canta uma alegria que não tem não canta nada a ninguém”, subo as escadas e penso na lição que o José Mário Branco me ensinou.

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