3° LUGAR – POESIA INTERNACIONAL – VIII Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"

 Do desprezo e da ânsia da carne


Maria Clara Arantes
Lisboa/Portugal


nesse vazio que me habita 

para dentro de órgãos, tripas, ossos 

no âmago mais profundo, inacessível 

corre algo de imaterial 

um fio de ouro 

ou de algo que outra coisa 

matéria presente em outro mundo 

de constituição alienígena, amórfica 

desprezível, apelativa, expansiva, irredutível, inebriante 

essa presença 

de quase nada, 

um frescor meridional sentido no escaldar do deserto, 

a inalação única de uma cidade inteira em chamas, 

sai de dentro de mim, 

por um único poro, um corte de agulha no dedo 

encontra o externo, o ar, 

sufoca de inadequação 

percorre o tudo do mundo 

se embaralha no concreto, no cimento, no carbono, no oxigênio 

paralisa no canto mais intricado 

resoluta, urgente 

entra súbito e violentamente 

o fio penetra a carne da unha, em outro sangue 

desliza em cadência lenta, em carne tenra, como se sempre ensinada para aquelas veias

já antes tão diminuto 

agora se desinibe, se multiplica 

torna-se tumor alastrado, reprodução parasita 

e ali permanece em condição de corpo análogo 

de emaranhado anónimo que se sublima no vaivém de dois âmagos presos pela

inconsistência de uma dentro das tripas interminável


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