3° LUGAR – CONTO – PROSA INTERNACIONAL – VIII Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"

 A morte de Dostoiévski


Rui Miguel Marques
Madri/Espanha



Numa tarde fria de inverno, entrei em uma cafeteria que ficava na esquina de duas ruas movimentadas que se cruzavam, porém pareciam não se encontrar. Fui recebido pelo ar quente das estufas, que trabalhavam na sua máxima potência na tentativa de manter a temperatura dentro do café diferente do ar da rua. À parte de um empregado que limpava as garrafas atrás do balcão, havia apenas um homem deitado com a cabeça sobre a mesa, os braços jogados para o lado e o café derramado no chão. Estava morto.

— Desculpe — disse eu ao funcionário que estava atrás do balcão. — Aquele senhor que está ali — apontei na direção do homem — está morto.

— Já faz duas horas que está ali assim — respondeu o empregado sem olhar para mim nem interromper o seu trabalho.

— E você não pensa em fazer nada? — perguntei.

— Fazer o quê? — disse. — Não há nada a fazer quando a morte chega.

Ninguém nunca soube ao certo como se chamava o homem morto. Em vida, era simplesmente conhecido como O Russo. Mesmo em seu anonimato causado pela morte de uma vida solitária, muitas pessoas acompanharam seu cortejo fúnebre de indigente.

Tempos mais tarde, disse-se que havia morrido um dia antes de completar cem anos; portanto, para efeitos oficiais, não era considerado centenário.

Tudo isso foi sabido depois de algum tempo. Quando entrei naquele local para escapar da fria manhã de inverno, O Russo não era nada mais do que um homem morto sobre a mesa de um café.

— O que o senhor gostaria? — perguntou-me o funcionário.

— Um café. Com leite. Muito quente — respondi. — E talvez uma ambulância.

— Um café e uma ambulância — repetiu o empregado, anotando meu pedido em um pequeno bloco de mão.

Sentei-me em uma mesa longe do finado, porém com plena visão do que estava do outro lado do salão: um corpo sem vida. Uma dualidade real: eu vivo, ele morto. É muito difícil fazer tarefas simples quando se sabe que alguma coisa está fora da normalidade. É muito difícil tomar um café quando há um homem morto à sua frente.

O grito das sirenes da ambulância entrou no local antes de qualquer socorro. Dois homens, carregando uma quantidade de aparelhos, entraram na cafeteria.

— Foi aqui que solicitaram uma ambulância? — perguntou um dos homens. — Sim. Este senhor pediu um café e uma ambulância — respondeu o empregado.

— Eu? — disse, e com o espanto deixei cair um pouco de café sobre a mesa. — Eu pedi sim uma ambulância, mas era para aquele ali — apontei na direção do morto.

— Alguém conhece esse homem? — perguntou um dos médicos. — Sim, ele está

morto.

— Eu! — disse uma mulher gorda que apenas havia entrado no café. — Sim, eu o conheço. É O Russo.

— Que Russo? — perguntou um dos socorristas, que abria uma parafernália de equipamentos no chão.

— Era professor na universidade — disse a mulher gorda. — Lecionava inglês. — Um russo que lecionava inglês? — perguntou um dos socorristas. — Vai ver era comunista — disse o outro.

— Ou espião — retrucou o que mexia nos equipamentos.

Foi assim que o falecido ganhou uma profissão. Sempre me impressionou o fato de que pensamos saber muito mais da personalidade de alguém, sabendo apenas a forma como a pessoa ganha sua sobrevivência no mundo. A desvantagem do morto é que ele já não podia se defender. Era espião ou comunista. E, quem sabe, em pouco tempo, seria os dois. Algumas pessoas nem precisam estar mortas para deixar que os outros definam o que são na vida.

— Não era nem espião nem comunista — disse a mulher gorda, mudando a personalidade do morto com suas palavras. — Era professor. De inglês. Na universidade.

— Por que todo mundo o chamava de Russo? — perguntou o socorrista das parafernálias.

— Porque era russo — respondeu a gorda.

— E por que ensinava inglês e não russo?

— Porque ninguém quer aprender russo.

— Isso não é verdade — disse eu, sem me dar conta do que havia dito. Mas dito estava.

Silêncio, e todos se voltaram na minha direção.

— Eu sempre quis aprender russo — disse, como se devesse uma explicação. — E para que o senhor quer aprender russo? — perguntou a mulher gorda. — Para ler Dostoiévski no idioma original — respondi.

— Ler o quê? — perguntou o segundo socorrista.

— Dostoiévski — disse o meseiro, entrando na conversa pela primeira vez. — Literatura russa.

— Ah, pensei que era algum jogo de cartas — disse o primeiro socorrista. — Mas, pensando bem, quem lê jogo de cartas em russo?

— Bom, alguma cartomante russa haverá — disse a mulher gorda.

— “A ignorância é o verdadeiro pecado”, já dizia Dostoiévski — comentou o trabalhador do café. — Não entendo como pode haver alguém que não saiba quem foi Dostoiévski.

Um homem entrou no café, ocupando toda a entrada. Muito bem trajado, em um terno azul-marinho, com uma gravata borboleta marrom no lugar do pescoço inexistente. Era ainda mais gordo do que a mulher que dizia conhecer o defunto. Olharam-se como que se reconhecendo um no outro.

— Oh! O Russo morreu! — disse, olhando na direção do morto e colocando a mão no peito, num gesto teatral.

— O senhor conhecia esse homem? — perguntou o empregado.

— Ele lia Tchaikovsky — disse a mulher gorda.

— Dostoiévski — retrucou o meseiro de mau humor.

— Esse era o nome dele? — perguntou o homem gordo.

— Ué, o senhor não disse que conhecia ele? — perguntou o empregado. — Só conhecia ele como O Russo. Para mim, esse era o nome dele.

— Que burrice — disse eu, levantando-me e me reunindo a todos em volta do morto. — Os russos têm nomes difíceis como Dostoiévski.

— Eu sempre o via passear pela praça com uma moça muito mais nova do que ele — disse o homem gordo, ignorando a minha presença e a minha falta de paciência.

— A Russa? — perguntou o médico das parafernálias.

— Não, a filha da Dona Clotilde, de Paranapiacaba.

— E onde está essa moça? Ela talvez possa nos ajudar. Não posso permitir que um morto fique aqui no café durante tanto tempo. Daqui a pouco o patrão chega e... — explicou-se o empregado.

— Esquece. Ela se casou e voltou para Paranapiacaba — disse o gordo.

— Vai ver O Russo era amante dela. Ela o abandonou. Só queria uma aventura. Morreu de desgosto — afirmou a gorda.

Assim, o defunto, que já tinha profissão, ganhou um amor. Como regra geral da existência humana, quem ganha um amor, seja ele correspondido ou não, ganha uma razão para viver. Porém, O Russo estava morto.

— Já disse uma vez Dostoiévski: “Amar é sofrer, do contrário, não pode haver amor” — disse o empregado.

— O Russo disse isso? — perguntou o homem gordo.

— Olha, o Dostoiévski tá morto mesmo — disse um dos socorristas, terminando de auscultar o defunto.

Ri alto. Um riso escandaloso e totalmente fora de momento, assim como toda aquela ignorância. Que O Russo e Dostoiévski estavam mortos, isso era um fato. Porém, estava claro que todos ali não sabiam nem quem era o defunto, nem quem havia sido Dostoiévski. Na arrogância típica dos humanos, todos sabiam de tudo. Numa verdade que não se discute, pelo simples fato de ser a sua verdade, seguiram na conversa.

— Eu nem sabia que ele se chamava assim — disse o homem gordo. — Então era escritor? Isso explica as horas solitárias em que vivia naquele apartamento. Só saía algumas vezes para buscar inspiração com a amada que o abandonou.

— Pobre homem — disse a mulher gorda. — E agora nem temos mesmo a quem avisar que morreu em uma mesa de uma cafeteria.

— Eu nem sabia que se podia morrer disso — comentou o meseiro.

— Disso o quê? — perguntou a gorda.

— De desgosto.

— Parece que é a morte mais comum entre aqueles que se frustram no mundo das letras sem ter tido algum êxito — disse o homem gordo, baixando a cabeça e amassando a gravata que deveria estar à volta do pescoço que naquele homem era inexistente.

— Mas Dostoiévski era muito conhecido na Rússia! — gritou o empregado da cafeteria.

— Na Rússia até pode ser, mas aqui ninguém conhecia ele não — disse o gordo. Pus a mão em desespero à cabeça.

— Ignorância — disse.

Uma vez escutei um homem dizer a uma criança em uma biblioteca pública que era impossível desaprender o aprendido. Refleti por muito tempo sobre essa frase e cheguei à conclusão de que não é verdadeira de jeito nenhum. Sempre se pode escolher o que se quer aprender.

Existe, na essência da espécie humana, e a razão desconheço qual, uma necessidade de saber justificar os fatos da vida cotidiana. Se justifica a pobreza porque pode haver riqueza. A doença porque há saúde. Quando algo não se explica pela lógica do cotidiano dos homens, se aplica a feitoria do divino.

Um homem morto em uma mesa de um local não pode ser apenas um morto. Tem de ser Dostoiévski.

— E o senhor disse que era vizinho dele? — perguntou a mulher gorda ao homem gordo. — Talvez possa avisar alguém.

— Não, não — disse o homem gordo, balançando a cabeça como se fosse um

detetive diante de um mistério. — Ele morava sozinho, nunca vi nem visita naquela casa.

— Escritor é tudo igual — disse o homem das parafernálias. — Eu conheci um poeta que vivia com um monte de galinhas. Até falar com elas o homem falava.

— Escritor e professor. Se não tivesse morrido de desgosto, morria era de miséria — disse o outro socorrista.

Fomos todos nos dispersando da cafeteria quando os socorristas colocaram o defunto sobre uma maca, enrolado em uma manta cor prata, para ser levado pela ambulância a algum hospital, talvez para ser enterrado como indigente.

— Coitado. Quero até ver se consigo ler um dos seus livros para saber mais quem era esse homem — disse a mulher gorda.

— Vou pedir para fazer uma lápide para que não seja esquecido — disse o gordo.

Naquela absurda teimosia em acreditar na verdade que mais convinha, o homem morto na mesa de um café ganhou uma nova história de vida. Ninguém se importava em quem ele havia sido de verdade. Ele era o que os outros queriam que ele tivesse sido, e, se algo não fizesse sentido na absurda verdade inventada, se buscava ajuda no mundo das ideias, e, com duas frases, O Russo ganhava uma nova vida, mesmo depois de morto.

Meses depois, logo após a chuva de uma tarde de primavera, saí caminhando sem rumo pelas ruas tortas daquele bairro. Entrei no cemitério para ler o que se escrevia nas lápides dos mortos, um hábito que conservava desde a pequena infância. Minha atenção foi dirigida a uma lápide simples, que não estava ali desde meu último passeio.

“Aqui descansa o Senhor Dostoiévski. Russo, comunista, professor e escritor. Local de nascimento: Rússia. Dia de nascimento: desconhecido.”

Uma mulher vestida de preto aproximou-se de mim, talvez por pensar que eu também chorava o defunto.

— Pobre homem — disse. — Dizem que Dostoiévski morreu de desgosto por ter se perdido de amor por uma moça de Paranapiacaba.

Saí perambulando por entre as covas do cemitério, olhando por todas as partes, em busca de nada.

Eu já não sabia mais em quem acreditar. Parecia que qualquer um poderia ser Dostoiévski.

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