Pedaço vivo da minha infância
Venho de uma família de quatro: pai, mãe, irmã mais velha e eu. Gosto de ser a caçula, sinto que já havia muito amor no mundo quando eu cheguei e eu não precisei fazer muito além de existir. Eu e minha irmã temos apenas um ano e meio de diferença. Penso ser pouco o suficiente para nos manter próximas e muito o suficiente para que ela saiba de coisas que eu (ainda) não sei - e aprender com ela é, sem dúvidas, o melhor jeito de conhecer o mundo.
Desde pequena escuto dos meus parentes “elas são tão próximas, parecem melhores amigas.” Eu ainda não sabia o que uma melhor amiga significava, mas uma parte de mim olhava para ela e sentia que nossas almas eram feitas da mesma coisa, e era uma sensação ótima. Lembro de quando brigávamos na infância, por uma boneca ou algo ainda mais trivial. Na reconciliação, administrada cuidadosamente pelos nossos pais, escutávamos: "sua irmã é a coisa mais importante que você tem no mundo. Você não quer perder ela por um motivo tão besta." E, instantaneamente, uma boneca realmente não parecia grande coisa se eu não tivesse com quem compartilhar. Ouso dizer também que a vida não seria grande coisa se eu não pudesse compartilhar com ela. De todos os presentes que ganhei na vida, ter uma irmã foi o melhor deles - e foi capaz de deixar todos os outros presentes imensamente melhores ou completamente obsoletos.
Eu realmente não sei se é assim com todas as irmãs, mas há algo quase mágico na minha relação com ela. Eu sinto isso quando ela sussurra algo na mesa de jantar, quando cozinhamos algo extremamente proibido juntas ou quando rimos de coisas que só nós achamos graça. É como viver num mundinho secreto, criado por nós. Nesses momentos, eu sou eu. Ela é ela. E eu amo a gente.
Meu pai adoeceu quando ainda brincávamos de boneca. Enquanto ele fazia as malas para o hospital, nos olhava com ternura e nos fazia prometer, sempre, que cuidaríamos uma da outra. Nós assentíamos e ele, com um sorriso de quem acabara de repassar o ensinamento mais importante de nossas vidas, ia embora aparentemente tranquilo. Apesar de tudo, não lembro dessa fase como algo doloroso. A infância sempre soou para mim como gargalhadas, cheiro de panqueca e colocar os pés descalços na grama molhada. E apesar de tecer um amor gigantesco por meu pai e ter empatia pela situação dele, algo na minha cabecinha de criança não poderia nunca entender, realmente, o que se passava ali.
Percebia sim que ele dormia demais, mas pensava que era porque ele se cansava de brincar no computador. Ele era escritor e só dormia de madrugada, quando o sono o vencia. Cheguei a reparar que havia muitas caixinhas de remédio em seu escritório, mas pensava que eram para dor de barriga - como as que eu tinha quando comia muita panqueca. Ele se medicava para poder conviver com uma dor maior do que qualquer coisa que eu poderia ter experimentado até então. Também notava que ele emagrecia rápido, mas pensava ser magrinho igual a mim. Éramos parecidos e eu não via mal nisso. Ele era internado com frequência para que, com a ajuda de máquinas, recebesse nutrientes que seu corpo, cansado, era incapaz de absorver sozinho.
Hoje reconheço que muita tristeza me rodeava quando menor e, sempre que posso, tenho chorado o pesar que eu não me dava conta que existia. Ser criança me poupou de enxergar tamanha dor, mas a vida adulta destampou meus olhos para uma verdade cruel:
meu pai morria aos poucos enquanto eu coloria com a minha irmã no quarto ao lado. Cheguei a pensar que, por ser mais velha, ela devia ter mais noção das coisas que eu. Mas esse pensamento sempre cai por terra quando me recordo de uma cena específica. Estávamos juntas, na recepção do hospital, usando um folheto de propaganda de diálise para fazer aviãozinho de papel. Falávamos do que queríamos comer quando chegássemos em casa. Foi quando olhamos para o corredor e vimos a mamãe voltar. Sem o papai. Nos encaramos com igual confusão. As duas franziram a testa na mesma fração de segundo e, se nosso pensamento fizesse barulho, seria possível escutar em coro: “ele não vai voltar.” O aviãozinho caiu no chão.
Nós dividimos uma infância pura e bonita. E dividimos também o exato momento em que ela se encerrou. Depois disso, a vida nos exigiu uma maturidade que ultrapassava nossos 12 anos de idade - e como não há como negociar com a vida, nós crescemos. Outras dores vieram depois, mas nenhuma maior que essa. Porque nada no mundo se iguala à dor de crescer antes do tempo.
Em 25 de janeiro de 2017 enterramos nosso pai. Ela insistiu para que colocássemos uma margarida em cima do túmulo porque ele gostava. O que não faz muito sentido, porque ele não poderia ver de qualquer forma. Não questionei. Ter uma irmã também é aprender a ceder por saber que, algumas brigas, simplesmente, não valem o desgaste. Depois disso, o luto deixou a vida cinza por um tempo. Muito tempo. Cada uma lidou de um jeito. Eu passei a escrever de madrugada, como ele fazia. Minha irmã falou em tatuar uma margarida no pulso e minha mãe, bem… ela seguiu da forma que pôde.
Preciso dizer que quando uma parte tão fundamental da sua vida se vai assim, numa quarta feira à tarde, você estremece por dentro. Há uma sensação horrível de ter que caminhar sem ter algo firme o suficiente para pôr os pés. A morte dele levou embora minha inocência e toda a cota de certezas que eu havia juntado até então. Senti que, diferente dos meus amigos, agora eu caminhava com dúvidas e inseguranças. Eu caminhava com medo. Receosa, cheguei aos quinze anos. Eu vivia uma vida segura, não arriscava demais. Não ía para festas ou namorava. Pensava, intrinsecamente: “tudo que a vida dá, ela pode tirar”. Logo, não há porque me apegar a nada que não seja extremamente essencial. Mas como eu disse, cada uma lidou de um jeito. Viver loucamente foi o jeito da minha irmã.
Na adolescência, ela teve sua primeira desilusão amorosa. Cheguei no quarto e ela chorava como se o mundo fosse acabar ali mesmo. Lembro de enxergar tamanha dor e não compreender, realmente, de onde vinha aquilo. Era como se o peito dela sangrasse e eu não pudesse estancar, por mais que tentasse. E eu tentava. Era nítido para mim como aquele cara não valia as lágrimas dela e a melhor amiga, bem, muito menos. Entretanto, por algum motivo misterioso, ela não enxergava isso. Fiquei ali na cama. Não queria que ela se sentisse sozinha. E por mais que não entendesse como alguém poderia causar
tamanha dor, insisti na ideia de que o mundo ainda era bom e que ela encontraria amor de novo.
Com 19 anos foi a minha vez. Curiosamente, mais uma vez envolvia uma melhor amiga e um cara que, nem de longe, valiam todo o transtorno que causaram. Mas eu não enxergava assim. Encarava o celular incrédula e chorava sem fôlego. Foi quando escutei o barulho do portão, minha irmã havia chegado do trabalho. Rezei baixinho para que ela viesse ao meu quarto. Ela entrou e sentou na cama ao meu lado, exatamente como antes.
A única diferença, dessa vez, é que ela me entendia de uma forma que não pude entendê la na época. Me abraçou com força. Com a cara inchada, olhei nos olhos dela, procurando alguma explicação. Ela apenas sorriu de canto e disse baixinho: "eu sei. Sei o que está passando. Se tem alguém no mundo que sabe, sou eu. Pode chorar." E quando não restavam mais lágrimas, ela perguntou: “O que quer fazer?” Sabíamos nesse momento que eu poderia pedir qualquer coisa no mundo. Uma comida, um presente, um filme. E ela faria. Abaixei a cabeça. Pensei muito para responder. “Quero fazer uma escova no cabelo”.
Eu me sentia feia. Mas não esteticamente. Por dentro. Indesejada. Rejeitada. Mas ela não parecia me enxergar assim quando, com carinho, penteava meu cabelo. Lembro de pensar: “Ela não me vê com os olhos do mundo". E **sei que, se pudesse, o enfrentaria para que ele me tratasse com a mesma gentileza. Às vezes, quero me esconder do mundo. Mas jamais dela. Porque sei que não há nenhuma parte de mim que minha irmã não conheça, não entenda ou não ame. E existir nesse mundo é mais fácil porque ela existiu primeiro.
Certo dia, ela levou uma pessoa para tomar café conosco. Pareceu um cara bacana. Enquanto minha mãe investigava a vida dele com perguntas nada sutis, eu prestava mais atenção em como ele a tratava. Em como se chamavam de "amor". Em como ele se preocupou quando ela queimou o dedo. E como fez questão de que ela comesse antes dele. Pensei baixinho: “Tomara que ela o escolha.” Isso porque minha mãe nos ensinou que eram sempre as mulheres que escolhiam. Mas, até então, ela não parecia ter critérios muito bons. Em alguns meses, o namoro se firmou e percebi como ela estava convicta de ter feito a escolha certa. Fiquei tranquila por isso. Não dá para saber se vão se casar e morar numa casa de campo, mas ele a trata bem. E eu não a vi chorar como daquela vez, não mais. Para mim, era suficiente.
Preciso admitir também que tive medo que as coisas mudassem entre nós. Ela passava muito tempo com o namorado e, de repente, ele sabia de coisas sobre ela que eu não sabia. Mas não acho que ela tenha me afastado por querer. Acho apenas que a vida aconteceu. E, em algum momento, ficamos muito presas no nosso próprio mundinho e esquecemos que, além de irmãs, somos amigas. A voz de papai ecoou na minha cabeça, lembrei da promessa e chorei. Senti muito por isso ter acontecido e rezei pedindo desculpas a ele. Mas não é nada irreparável, acho que o que temos não pode ser perdido assim… no esquecimento.
Fui até o quarto dela. Sentei na cama e perguntei como iam as coisas. Conversamos até de madrugada. Lembramos dos namoradinhos antigos e rimos enquanto ela explicava como agora era diferente, melhor. Saber disso, por ela, foi bom. Incrivelmente bom. Pensei: “Talvez eu não participe mais de todas as histórias, mas eu ainda posso escutá-las. Ainda posso acompanhar. Eu não estou totalmente de fora. Nós somos amigas. Sempre seremos.” Minha alma foi dormir em paz e, por um certo momento, jurei poder sentir cheiro de panquecas e escutar nossa gargalhada de criança de novo. Deve ser porque, em algum lugar, meu pai sorria, feliz por nós.
A partida dele me ensinou que os pais não são eternos, embora eu possa sempre contar com a cumplicidade de uma irmã. As decepções amorosas que tivemos em seguida me ensinaram que os caras não valem todo o nosso choro, mas que sempre existirão irmãs para enxugá-los. Aprendi também que as amizades são inconstantes e que não temos
muita coisa a que nos apegar nessa vida, mas é possível me apegar no amor dela. É, na verdade, a única coisa possível. Papai me mostrou isso. E hoje eu sei que, se eu acordar amanhã e não tiver mais ninguém, eu ainda tenho ela.
Eu sou, de todo o coração, muito grata por ter uma irmã. Pela vida e pelo amor que dividimos. Tudo seria diferente, desde o início, se não pudesse ser compartilhado com ela. Ao mesmo tempo, sinto muito, muito mesmo, pelos que vieram ao mundo sozinhos. Graças a ela eu não sei o que é me sentir sozinha. Preciso dizer que a vida adulta tem se mostrado, no mínimo, assustadora. Mas eu tenho sorte porque a minha alma é alimentada diariamente pela nostalgia da infância bonita que tivemos, quando os problemas ainda não existiam. Bem, até existiam… mas nós não sabíamos.
E eu sei como é comum falarmos da infância não como um período de tempo, mas como um lugar de conforto. Bom, eu falo da minha irmã, porque ela é um pedaço vivo da minha infância, que eu nunca poderei perder e para onde sempre posso retornar - não importa o tempo. E mesmo que eu tenha crescido e as lembranças estejam embaçadas por todo pesar que eu não enxergava, sei que há uma pessoa no mundo que compartilha desse mesmo sentimento. Ela se recorda das pinturas em aquarela no quarto, da recepção do hospital e do aviãozinho de papel. O cheiro de panqueca para ela tem o mesmo efeito que tem para mim. Essa é uma forma de amor diferente de tudo que já conheci. É o amor de uma vida compartilhada: os momentos bons e ruins. A inocência e a maturidade. Tudo isso coexistindo em meio a vulnerabilidade, cumplicidade e lealdade.
Por ser muito nostálgica, por muito tempo me apeguei às casas que moramos juntos, nós quatro. Eu gostava particularmente da casa com o pé de acerola. Mas toda a magia do lugar vai embora quando me imagino sozinha naquele quintal. Nesse momento, a grama molhada é só uma grama. Quando tiro o meu pai do escritório e minha mãe da cozinha, o cheiro de panquecas some e não ouço mais as gargalhadas da minha irmã. Eu acho que há lugares capazes de despertar em nós os mais puros sentimentos. Sentimentos avassaladores, que tomam a gente por completo e deixam apenas lágrimas para contar a história. Mas se você tira a história, então é só um lugar. E muito mais vale o que ficou no seu coração no breve momento em que viveu ali.
Por fim, quero compartilhar que a efemeridade da vida não me assusta mais como antes. E hoje tenho uma cota de certezas muito menor do que tinha aos doze, mas de uma coisa eu sei: meus filhos terão irmãos. Vou ensinar a eles o que meu pai me ensinou. Eu não sei ainda o que a vida reserva para eles, mas de uma coisa tenho certeza: como mãe posso fazer com que iniciem a vida ganhando, como eu ganhei quando abri os olhos e minha irmã estava lá. E como eu ganhei todos os dias, desde então, só porque tinha ela comigo, transformando todos os lugares em amor no meu coração.
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