2° LUGAR – CONTO – PROSA NACIONAL – VIII Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"

 Muiriquitã


Marcos Souza
Manaus/AM

Ontem velaram o corpo do Senhor Jardel, meu padrinho, comandante respeitado em  Manaus e muito bem-quisto, e isso se via pela quantidade de gente no último cortejo dele.  Escorregou na proa do barco, bateu com a cabeça na quina da murada e desfaleceu num  instante. Deus me perdoe, mas recebi a notícia da morte com grande alívio, pois, além da  minha liberdade, é menos um demônio solto pelas ruas dessa cidade tão sofrida. 

Ninguém acredita quando conto que, morando no interior do interior com minha mãe e  meus sete irmãos, fui vendida aos oito anos pela minha mãe para um marinheiro de convés  mascateiro, custando um casal de tracajás e uma saca de farinha baguda de índio. O  barqueiro, pai de breve criação, se chamava Seu Edu, ia de Barcelos para Manaus e vice 

versa, sabia de cor e salteado os bancos de areia, as pedras e as armadilhas da natureza.  Além da mercadoria para as duas cidades, Seu Edu aportava em algumas comunidades  do rio Negro para fazer as permutas que o favoreciam com boa margem de lucro. 

Nesses interiores dos interiores, cujos nomes santos e santas batizam as comunidades, as terras são anárquicas, triplica-se o preço para o pobre, reduz-se em um quinto o produto  da terra preta: o que vem de Manaus é caro para o ribeirinho, o que sai da mão dos  ribeirinhos é barato para o manauara. O único direito pontual dos ribeirinhos é o de ser  explorado, sendo tapada as suas bocas com uma mordaça cosida a frase “Ordem e  Progresso”. 

A bem da verdade, quem me adotou na negociação dos tracajás, da farinha e da minha  vida foi a madrasta Nastácia. Ela era casada com o Seu Edu, minha mãe e pai de  mentirinha, meus pais por quatro meses. Eles viajavam no barco Princesa Isabella, uma  embarcação caindo aos pedaços, mas de um motor potente, rápido feito um boto. Ela era  a cozinheira, ele, o marinheiro faz-tudo, já eu, uma criança que desde cedo aprendi a  cuidar da casa, da casa deles, tendo como tutora a minha avó postiça e enferma. 

Os elogios das mulheres eram para minha habilidade e apuro nos afazeres domésticos, já  dos homens, eram sobre meu corpo de mulher já desenvolvida. Mas eu tinha um  muiraquitã, um colar com pingente em forma de rã, talhado numa pedra de um verde escuro opaco. Artefato que inicialmente, quando recebi de minha mãe indígena Iara, tomei por sujeira, estando impregnado no meu peito como a orelha em minha cabeça; mas, de qualquer jeito, era só meu e único vínculo materno. 

As mulheres viam com naturalidade, era normal a gente vinda do interior ter algum  adereço do lugar de origem; por outro lado, os homens tinham uma reação um tanto  obsessiva, fixada, sedenta, por mais que disfarçassem; o muiraquitã ornando uma criança  causava uma sensação de remorso, mas que era amenizada com o passar do tempo. 

Bateram em nossa porta, a escola me foi negada, então, além dos cuidados da casa, seria  eu quem atenderia os chamados para a avó quando Jardel e Nastácia estivessem viajando. O rastejo submerso da cobra-grande. A tempestade havia engolido em torrentes,  banzeiros, rebojos e ventos o Princesa Isabella. Quatro sobreviventes, dois marinheiros,  um carregador e um prático, todos ribeirinhos matutos, nenhum que morava naquela 

chorosa e fúnebre casa da qual fui responsável por cuidar. Velório sem corpos, abandono  ao leu, herdeira de nada, despejo. 

Já morri demais, necessitava era viver. Talvez não tenha sentido nem o luto da separação  do meu primeiro lar, apenas a falta das brincadeiras dos curumins e as minhas amizades  com as cunhatãs do meu povoado, quem dirá ter sentido com quem meu vínculo era, antes  de tudo, fruto de uma troca comercial. Tinha o muiraquitã, e esse, sim, era só meu, sentiria  uma eventual ausência. Em curtos relampejos, lembro dos rostos dos meus pais de  verdade. Confundo meu rosto nos deles e de meus irmãos. Continuo sendo indígena, mas  indígena embranquecida. Embranqueci no que me foi conveniente, pois a história dos  meus antepassados é oral, hereditária, de pais para filhos, enquanto a dos brancos é criada  pela mentira, a mentira aceita, conveniente, que neste momento me faz pegar uma caneta  e um papel para escrever para o teu tão aplaudido jornal. 

Francamente, todo mundo sabe que quase ninguém liga para a causa indígena. Os  militantes dos povos originários estão mais perdidos que os exterminadores, com a  diferença de que os exterminadores são coerentes em defender o que defendem, uma vez  que essa sempre foi a ideologia do Brasil. A tendência é os brasileiros fazerem com os  indígenas o mesmo que foi praticado pelo Homo sapiens com os Neandertais: ou se une  e desfaz a linha ascendente, ou perece pelas doenças e pelo silencioso extermínio. Estou  mentindo? 

Depois da explicação emotiva, vem a censura. É o que geralmente acontece. E se for para  economizar as palavras, se elas ferem o livro de História do teu estado, obedecerei, enfim.  Obedecerei, obedecerei como o policial que, com a mira no teu rosto, questiona teu  nervosismo suspeito. 

Vamos, covardes! Ou não saberás lidar com o passado vergonhoso? 

Fujam, como a avó fugiu, melancólica e lutuosa, para sua antiga morada, no município  de Coari. E eu com meu muiraquitã? Fui largada ao irmão do meu falso pai, no caso, o  terceiro pai, o Senhor Jardel, juntamente com a sua mulher, Dona Rogéria, e seus dois  filhos, Dudu, de quatorze anos, e Carlinhos, de doze. Adentrei lastimosa a decadente  classe média amazonense.  

Se a fala soa com excesso, cederei em poucas palavras o que quero contar. Sem perrengue.  Melhor, reparta em duas matérias a minha história, ou use a capa e a contracapa para expor o que lhe trago de graça, sem permuta. Só não me silencie. Se não for por mim, que  seja pelo meu muiraquitã. 

Dez anos da infância, o banho numa cachoeira particular de Presidente Figueiredo. Dona  Rogéria, em cima de uma pedra no meio do igarapé, apertando minhas bochechas com  força, pede a atenção dos familiares e amigos, expõe meu muiraquitã. “Olhe o muiraquitã  da indiona, será se ela vai perder cedo pra alguém”, disse gargalhando. Engoli o choro,  me joguei da pedra, nadando para a margem; ao contrário de todos ele, sabia nadar. 

Onze anos da infância, os irmãos invadem à noite o espaço que tinha debaixo da escada  que me deram como quarto; a rede fazia um V no vão diminuto, tal como minha coluna,  como podem ver. “Deixa a gente tocar no muiraquitã, senão a gente vai te jogar na boca  da cobra-grande”, disse o mais velho. “A gente pode pegar sempre que um de nós quiser,

tu não é nossa irmã, nem é gente grande de verdade”, disse o caçula após me enforcar o  colar de meu pescoço. 

Ainda com onze anos da infância, o Senhor Jardel me colocava em seu fusca para passear  na Ponta Negra. O carro para de frente para o sol se pondo, pedindo para que eu me sente  em seu colo, apoiando meu rosto trágico sobre o volante, agarrando meu muiraquitã com  o corpo trêmulo e me prometendo uma tapioca com coco toda vez que passássemos o pôr 

do-sol juntos. “De manhã não tem tapioca com coco”, ousei dizer, limpando o muiraquitã  úmido pelo suor de sua mão. “Não contando do muiraquitã para ninguém, compro o que  tiver de melhor para ti”. 

Os anos seguintes se sucederem de maneira que o muiraquitã parecia valer mais que  minha própria vida, embora pensasse que uma coisa tenha a ver com a outra. 

O relato está muito longo? Mas o que vou fazer se poucas palavras não expressam grandes  dores, mano? 

Dudu viajou para Brasília, Carlinhos parecia querer tomar o muiraquitã para si. Eu  cumpria o meu repetido destino: lavava, varria, passava, cozinhava e cuidava de Dona  Rogéria e Senhor Jardel. O quarto de Dudu virou o meu novo quarto, e isso se deu pela  insistência da minha frequente companhia dos fins de tarde. Outros rapazes querem meu  muiraquitã, recuso sob a vigilância de Dona Rogéria, o colar era meio meu, meio da  família que me sustentava. 

Preciso encerrar agora, já? 

Meu muiraquitã? 

Quatorze anos da mocidade, Dudu retornou com sua noiva, uma mulher nova de Brasília, e sua filha recém-nascida. Voltei para debaixo da escada e, se não fiquei totalmente corcunda, foi pelos favores de Carlinhos, que me deixava dormir quase o mês todo em  seu quarto, só não durante uma semana ou quando o irritava. O colar ficou em frangalhos,  era o Senhor Jardel puxando de um lado, o Carlinhos de outro. O Dudu? Nos primeiros  meses, não quis saber do muiraquitã; só nos primeiros meses. Carlinhos tinha começado  a namorar, sempre me perco com datas, mas ainda assim continuou, vez ou outra, me  chamando para virar à noite, se prendendo no muiraquitã. 

Saí da jovialidade direto para a velhice, da face inocente para a abatida, o que não mudou  foram os serviços, a fixação dos homens pelo meu pingente, as visitas noturnas de Dudu  e Carlinhos e as saídas nos fuscas para contemplar o pôr-do-sol. 

Basicamente, me criei sem educação e maiores instruções. Abandonei minha família. Aprendi com as ruas e os invisíveis. Até hoje, o pessoal dessa cidade considera o indígena  como uma classe sub-humana, claramente inferior se comparados aos seus ágeis e  egoístas filhos. Só não admitem, porque são covardes. Se os mais de fora ainda o chamam pejorativamente de “índio”, eles se defendem com o progresso de uma ditadura. As  mortes de uma guerra na Europa os comovem mais que um genocídio na comunidade da  outra margem do rio. Nascemos para acompanhar de perto a nossa extinção. E se hoje  escrevo para o teu jornal, é por ter fugido e enfrentado o mundo com unhas e dentes …

Mas, veja só, como o mundo é um moinho, amigo redator. Depois que fugi, soube  finalmente proteger meu muiraquitã. Mais do que nunca, reconheci, na fuga, o fato de o  artefato sempre pertencer exclusivamente a mim. 

Só mais umas poucas linhas, tudo bem? Deixo quieta, quando quero. 

Sabes qual a ironia no final de toda minha trajetória de mortes e perseguições ao meu  amuleto sagrado? Michelle, a filhinha do Dudu, parida pela noiva brasiliense, lembrava  muito eu quando criança, não pela aparência, pela cor ou por qualquer outra característica  física, mas pela razão de, veja só, trazer consigo, cingindo-lhe o pescoço, um pequeno  muiraquitã. 

A diferença do meu colar para o da criança era apenas o pingente, no meu estava esculpido uma rã, no dela, uma tartaruga bem pequena. Ela era que nem eu, de pingente diferente,  mas ainda assim muiraquitã. 

Manaus, 21 de janeiro de 2025


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