1° LUGAR – CRÔNICA – PROSA NACIONAL – VIII Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"

Menina de Seca


Herena Reis Barcelos
Itinga/MG

De primeiro, eu tinha medo de chover muito grande. Mesmo quando a chuva vinha  minguada, eu sempre achava que o céu ia enraivar. Também, eu era menina e o céu aquele  imenso todo. Parecia até que a chuva era mais. Talvez porque o que a gente lembra de  medo é de quando o medo está aceso, então, parece que é mais tempo do que foi. Ou,  talvez, porque a chuva era mais, mesmo. 

Minha Terra é mais seca. E está mais secando. Mas isso é só nosso normal. Dessa secura  é que vi os primeiros sorrisos, brotando como renovo, sempre que a chuva vinha, e o povo  carregando pedra na cabeça, quando estiava tempo demais, e mainha fazendo prece pra  São Pedro, que é santo que faz chover. E o próprio chão sorrindo verde depois dos pingos.  E eu vi Seu Zé todo sestroso, porque ganhou uma caixa que só fazia guardar água da  chuva. Mas quando eu fui à casa dele e vi o tamanho do trem, decidi que a água era mesmo  um presente muito maravilhoso, para merecer embalagem tão grande. 

Arrematou quando a surpresa me pegou desprevenida e o céu deitou água em cima de  mim. Mais que fresco, aquilo me pareceu livre. E eu me apaixonei pelo banho de chuva.  E, quando a gente se apaixona, despista até os medos. De bom grado, fecha as janelas,  corre das árvores, calça os chinelos e deixa chover até falar chega. Mesmo quando ela  resolve vir grande demais, que até a natureza de existir carece de extrapolar, às vezes.  

Quando ela resolvia vir grande demais, com raio e estrondo, eu fechava os olhos e pensava  só na água boa, aquela da caixa grande, que molhava a terra, alimentava os rios, matava  as sedes, limpava os espaços, purificava as almas. Para chuva grande demais, painho me  ensinou a pegar copo d'água é rosário, e pingar vela em cruz. De pingar vela mesmo eu  não tenho lembrança, mas a certeza do saber é o conforto que a segurança carece. 

Depois eu fui ganhando tamanho e mudando as importâncias. A gente caça chuva do lado  de fora, para se ensopar, mas não é sempre que molha. Aí, a vida ressecou. E eu me  esqueci do céu e de que banho de dentro de casa não lava a alma que nem banho de  nuvem. E que a fragilidade requer muita coragem. Então, eu tinha um medo muito grande  de chover. 

Talvez pela secura de meus arredores. Talvez, meu próprio entremeio que, de ser já  agreste, me acomoda bem na aridez do escasso. Aí a gente se desfaz do guarda-chuva,  porque se desfez das esperas. E, pior ainda, certa hora a gente se desfaz das nascentes, da  própria nascente, porque nascente precisa de caminho para ser Rio. 

Inda bem que o Rio de minha Terra, mais seca, é proseador e leva a gente na lábia.  Derrama umas lutas, rega umas esperanças, navega umas companhias, leva uns encontros.  E,na lida com o percurso, a gente lembra que é corredeira. Até que derrete de novo, e  enche, e evapora, e condensa, e derrama. E sente, que até o peito escorre.

Menina de seca, de tanto ansiar água, me tornei nuvem. E no ciclo, eu me retomo rio.  Recomeço. É o alento de, sendo Vale, ser leito. Menina de seca, crescida, eu tinha um  medo muito grande de chover, mas chovi.


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