1° LUGAR – CONTO – PROSA NACIONAL – VIII Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"

  Duas vidas em uma


Priscila Pereira de Aquino
Vitória/ES

Aos oitenta e três anos me permito, por vezes, transformar em lágrimas as  sombras que acompanham minha trajetória pelos caminhos tortuosos da vida.  Meus passos, por vezes lentos, errantes e despretensiosos, transportaram meu  corpo e alma por muitos espaços imprevistos e outros tantos necessários. Com  o tempo, aprendi a conviver com os fantasmas do meu passado e as lembranças  da minha terra natal. Aprendi a entendê-los, a atender suas demandas e  urgências. Aprendi que a essa dor dá-se o nome de saudade e que nomeá-la  não a torna menos tangível. A dor da saudade é dor de alma, mas também é dor  de carne. É enraizada e ramificada: parte do coração, dói no peito e transborda  pelos olhos. É a falta do que não voltará, o pesar pela ausência dos que já se  foram, o desconsolo da lembrança de todas as coisas e fatos que me moldaram.  A saudade é uma certeza, como se parte de mim estivesse incompleta, aquela  parte que relutou para ficar no momento da despedida. Minha pátria ainda  guarda, junto a seus templos serenos, cerejeiras floridas e disciplina formidável,  meu coração de menina. 

No início dos anos 1900, minha família vivia da agricultura em uma pequena  aldeia no interior do Japão e assim como muitos outros camponeses da região,  meus pais trabalhavam sol a sol para cultivar arroz e vegetais em uma pequena  propriedade de terra que mal era capaz de gerar sustento para os filhos e filhas.  As colheitas eram cada vez mais escassas, quando as indústrias com seus  dentes pontiagudos e garras afiadas, devoravam definitivamente as lavouras e  tudo mais que ficasse em seu caminho. A promessa de empregos nas fábricas e melhor oportunidade de educação para os filhos não passou de um sonho que  aquelas comunidades não viveriam para realizar.  

Enquanto menina, eu pouco entendia o que se passava no mundo dos adultos.  Fui criada dentro de uma estrutura familiar rígida e tradicional, em que a  disciplina e o respeito aos mais velhos eram regras indiscutíveis. O silêncio de  minha mãe e a rudeza de meu pai, me mantiveram afastada da realidade cruel  a que éramos submetidos. Como filha mais nova, minha vida se resumia a ajudar  minha mãe nas tarefas de casa e me dedicar com devoção à descoberta da  escrita e da leitura, carregadas de nossa cultura tradicional. 

Com o avançar do tempo e a falta de perspectivas, uma vida nova em um lugar  distante passou a ser uma opção a ser considerada. Meus pais, se  entusiasmaram com relatos de outros que partiram antes de nós e se  convencerem de que uma terra promissoramente mais fértil nos traria as  oportunidades que nos foram negadas em nosso país. Toda nossa mudança foi  acomodada em dois baús pequenos e uma maleta de viagem. A mim coube levar  apenas um velho caderno de caligrafia que me acompanharia por toda a vida.  Suas páginas, hoje amareladas pelo tempo, receberam o último registro na  manhã em que deixamos nossa terra rumo ao Brasil. Naquele momento, o  sentimento que me invadia ainda não tinha nome, mas já machucava e doía.  Entre lágrimas infantis, reproduzi em meu caderno o haikai que marcou minha  partida: 

“Nem sequer três dias 

Este mundo vê passar – 

Cerejeira em flor!”

Vivi duas vidas em uma. Da minha infância no Japão mantenho comigo o  respeito à minha origem e às tradições, a resiliência do meu povo frente às  adversidades, o respeito aos mais velhos. A cerejeira imortalizada em meu  caderno de escrita me recorda que a vida é feita de instantes, que ciclos se  encerram para que outros surjam. Que eu, assim, com suas flores, cairei  inevitavelmente quando meu ciclo se cumprir, embora me sinta forte e imutável,  a montanha que habita em mim sucumbirá no momento devido. 

Aqui, aos oitenta e três anos, descanso a palidez de minha pele senil sob a  sombra de um reluzente ipê, amarelo ouro, amarelo vivo, amarelo Brasil.  Abraçada a meu velho caderno, seguro entre os dedos magros uma pequena  flor que me aquece o coração dolorido. Neste país entrelacei minha vida, meu  sangue e suor com os de tantos outros imigrantes que aqui chegaram na  esperança de tempos melhores. Melhorias essas que recebi, que vivi. Minha  segunda vida, não foi marcada por tristezas ou privações. Aqui a menina  japonesa se tornou mãe e avó. Com a intensidade e a alegria natural das  relações entre as pessoas deste lado do planeta, aprendi a expressar meus  sentimentos e, algumas vezes, me permiti ousar. A saudade, essa que sinto, não  está relacionada ao que vivo hoje, ao que conforta meu coração idoso, ao que  me levanta nas quedas. A saudade que sinto, é da menina sem medo, daquela  que começava a transformar letras e símbolos em palavras. Meu íntimo é um  caldeirão de incongruências. Em meu peito a gratidão lateja, embora mais ao  fundo, em meu coração a saudade inflama. Ambas são formas de expressar o  mesmo desejo palpável de paz, de pertencimento. Me conecto com minhas duas  vidas, que apesar de dúbias, me constituem como nenhuma outra pessoa. Sou  única, quebrada e inteira. Luz e sombras. Menina e mulher. Cerejeira e Ipê.


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