1° lugar – CONTO – PROSA ESTUDANTIL – ESPECIAL OURO BRANCO – FUNDAMENTAL FINAIS – Colégio Batista Mineiro Unid. Ouro Branco – VIII Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"

      Os Espíritos Enfermiços


 Letícia Torres de Paiva Ribeiro
9° ano

Alice já não aguentava mais sua monótona rotina. Para ela, uma jovem escritora movida pela magia da imaginação, dias comuns eram extremamente exaustivos – uma vez que não conseguia criar suas histórias sem a inspiração do incomum.

Com seu jeito diferente e intrigante de ver o mundo, Alice havia, finalmente, conseguido um contrato com a Editora Ramalhete, uma pequena editora belo-horizontina, que embora ainda não fosse muito reconhecida, deixou a escritora animada com seu primeiro passo em direção ao mundo dos escritores.

Porém no momento, ela não estava conseguindo concluir seu projeto inaugural na Ramalhete, um livro que continha uma coletânea de contos feitos por vários jovens escritores, sedentos por divulgar suas palavras com o mundo. E, por isso, Ângela, chefe da editora, não parava de cobrar e pressionar Alice por um progresso mais eficiente. 

Frustrada com sua atual situação, a jovem decidiu que era hora de se organizar e agir. Ela estava determinada a encontrar inspiração para que continuasse realizando seus sonhos. Alice, então, começou uma pesquisa por lugares com mistérios e lendas a serem desvendadas. Foi assim que ela encontrou Ouro Branco, uma cidadezinha histórica da sua região. Alice sentiu uma inexplicável conexão com a cidade, e acreditou que isso era um sinal de que seria o lugar certo. 

Como não tinha nada que a impedisse de embarcar em sua nova aventura, Alice arrumou suas coisas, levando apenas o básico e seus itens de maior valor sentimental – sua lapiseira gasta (com a qual escreveu todos os seus textos de valor), seu livro de conforto (“A Hora da Estrela” de Clarice Lispector), seu colar (que ela sempre usava e que ocupava suas mãos em momentos reflexivos ou tensos) e seu óculos com armação transparente (que ela colocava quando precisava passar uma energia mais intelectual). Pegou o primeiro ônibus para Ouro Branco que encontrou e partiu. 

Chegando ao seu destino, Alice logo foi para o hotel que havia reservado. Localizado no centro da pequena cidade, o Hotel Verdes Mares parecia um lugar digno para se instalar pelos próximos dias. Muito limpo, organizado e com um atendimento hospitaleiro – principalmente quando a recepcionista ofereceu para a jovem uma fumegante xícara de café percebendo que era tudo que ela precisava depois da viagem – Alice ficou muito mais confortável na nova cidade.

Dirigiu-se para seu quarto, colocando tudo em seu devido lugar. Ao terminar, ela, enfim, abriu as janelas do quarto, que lhe proporcionaram a melhor vista que poderia pedir. Além da linda Serra ao fundo, Alice se deparou com uma pequena biblioteca. Onde seria melhor para começar suas buscas se não na biblioteca da cidade?

Animada com a nova descoberta, a escritora sai do hotel às pressas rumo à Biblioteca Pública Municipal Jornalista Virgílio Carlos – onde encontraria respostas ou, ao menos, direcionamentos.

Ao entrar, Alice ficara maravilhada com a simplicidade mágica do lugar. Analisou o conteúdo das prateleiras e encontrou alguns livros que a interessaram – dentre eles estavam “Ouro, Café e Mulher”, “O Refúgio dos Lobos” (ambos de autores ouro-branquenses) e um livro com capa de couro que parecia antigo e muito gasto.

Como esse último não tinha um título muito legível e, por alguma razão, estava com páginas completamente em branco, Alice resolveu deixá-lo na estante e levar apenas os outros. 

Dirigiu-se à fila para registrar seus empréstimos e notou algo curioso. A fila estava cheia de pessoas dos mais diferentes tipos – um casal de idosos, uma garotinha com sua mãe, um jovem estudante, um grupo de garotas falantes – todas ali para alimentar seus espíritos com a literatura. O fato de a cidade contar com leitores assíduos esquentou o coração da escritora, por isso, ela nem se importou com o tamanho da fila.

Enquanto esperava, Alice se pegou tocando em seu colar – um simples ato de memória muscular, mas que retomava muitas lembranças de várias fases de sua vida – e sentiu que não deveria ignorar o antigo e gasto exemplar que encontrara mais cedo (ela esperava que fosse um bom sinal). Então, tirou o livro da prateleira e o colocou entre seus materiais de pesquisa. Concluiu os registros necessários e foi para o hotel. 

Alice trabalhara o resto do dia depois de chegar da biblioteca, e só foi notar as horas quando chegou ao último livro que precisava de ler – o livro antigo e misterioso.

Já passavam das três da manhã, mas como a escritora não estava cansada, resolveu que terminaria tudo durante a madrugada.

A primeira coisa de que Alice lembrou ao pegar o livro foi das páginas em branco. Porém, como se fosse mágica, tudo estava escrito. A jovem logo se assustou e começou a considerar a possibilidade de estar mentalmente exausta, mesmo sem sono, para conseguir ver as páginas em branco, escritas.

Como Alice era movida por mistérios, lendas e magia, não deixou sua “loucura” de lado, foi ler o livro. Antes de começar, tentou desvendar o que estava escrito na capa de couro, e viu que o título era “Os Espíritos Enfermiços”. Esse título deixou a escritora ainda mais intrigada. 

O livro tratava de uma lenda ouro-branquense que se passa no Hospital Raimundo Campos. Segundo ela as pessoas que falecem com doenças graves no hospital têm seus espíritos presos em um portal que pode ser acessado por meio do depósito dos fundos do lugar. Isso acontece porque os “espíritos enfermiços” não são aceitos outros por serem “doentes”, e por isso, são condenados a ficarem no portal de passagem entre nosso mundo e o mundo dos espíritos.

Alice foi, ainda, surpreendida com os escritos das páginas que estavam em branco – “Atenção! O portal só estará aberto enquanto estas páginas estiverem escritas”; “Caso não saia do depósito antes de o portal fechar, você ficará preso até que alguém vá te salvar”; “Nuca toque em um espírito rancoroso”.

Ao terminar de lê-los, as palavras começaram a sumir, novamente, como se nunca houvessem existido. Então, a escritora percebeu que esta era a hora do portal fechar. Às quatro da manhã!               

Com todas essas ideias a mil em sua cabeça, a jovem resolveu que iria tentar dormir um pouco e, mais tarde, resolveria o que fazer em relação aos “espíritos enfermiços”. 

Quando acordou estava com as energias renovadas. Aproveitou para tomar um banho quente, já que o dia amanhecera frio, e logo desceu para aproveitar do delicioso café da manhã do hotel. Porém seu dia não continuaria nesse ritmo leve, porque Alice resolvera que iria até o depósito do Hospital Raimundo Campos – graças a um sentimento proveniente do fundo de seu âmago que dizia que ela encontraria algo importante lá.

Depois do café então, a moça foi organizar seus planos noturnos. Releu a parte escrita do livro, arrumou a roupa que usaria, e começou a escrever para o projeto da Ramalhete.

Um pouco antes das três da manhã, Alice chegara ao hospital (já que, segundo a lenda, o portal ficava aberto por apenas uma hora), que tinha uma energia sombria e, ao mesmo tempo, um toque de mistério notável. Seguindo as orientações do livro, ela rapidamente chegou ao depósito, porém, ficou com um leve receio de abrir a porta (a escritora estava com medo do desconhecido, mas logo lembrou-se de sua frase preferida de Ayrton Senna – “O medo me fascina”), entretanto, com coragem, a abriu.

Diante da porta escancarada, ela fechou os olhos, levou a mão ao seu colar – que por alguma razão lhe reconfortava – respirou fundo e conferiu se ninguém havia a visto. Certificada de que nada a impedia, entrou, e logo no primeiro passo a porta se fechou, deixando-a no escuro.

Alice rapidamente percebeu a vastidão obsoleta do local – tirando a conclusão de que era grande demais para ser um simples depósito. Começou a notar, também, fracas luzes vindas de todos os cantos e quando olhou mais atentamente percebeu que eram os espíritos. Andando entre eles a escritora notou a solidão e a dor que carregavam em seus rostos, dando a ela apenas rápidos e vazios olhares.

Acreditando que já havia visto demais, mesmo em pouco tempo, ela começou a refazer seus passos rumo à saída – o que não seria difícil, já que ela não desviou o caminho, andando apenas em linha reta. Porém, Alice nota um espírito que a encarava fixamente. Era uma mulher jovem cujo rosto a escritora reconheceu sem muito esforço. Era sua mãe. Era a antiga dona do colar que sempre a reconfortava, era o rosto que sempre aparecia enevoado em seus sonhos, era o motivo de ela ter se sentido conectada com a cidade – foi onde sua mãe falecera.

Tudo que Alice sabia sobre a própria história é que havia sido deixada em um cesto na porta de um orfanato em Belo Horizonte. Tinha apenas uma etiqueta com seu nome e um colar que continha uma delicada pedra vermelha. 

De frente com tantas revelações, Alice só conseguiu correr em direção a sua mãe com uma vontade imensa de abraçá-la. A jovem escritora, que sofrera tanto tentando decifrar seu passado, queria apenas um último contato materno.

Quando chegou perto de sua mãe, o espírito se afastou, olhou no fundo dos olhos de Alice e perguntou com um tom empoeirado: “Você sabe por que estou aqui, Alice?”. A escritora se assustou, mas rapidamente fez que não. O espírito de sua mãe continuou: “É por sua causa que estou aqui! Minha gravidez acidental fez com que todos me esquecessem. Tive que me mudar para Ouro Branco, por ser a cidade mais próxima e onde eu poderia ter uma vida digna. Te gestei durante os 9 meses, lidei com todas as dificuldades sozinha, e você nasceu, saudável. Isso, porém, teve como preço minha vida! Graças a você eu tive uma hemorragia pós-parto fatal devido a uma doença infecciosa no útero! Por isso, Alice, estou aqui, condenada à eternidade infeliz de um “espírito doente”. 

Alice sentiu um enorme aperto no peito e não hesitou em abraçar sua mãe, que dessa vez não resistiu. Porém durante o abraço, o espírito falou: “Você deveria se atentar mais às regras, Alice. Ou acreditou que eu não guardaria rancor do “serzinho” que me condenou a um inferno eterno como “espírito enfermiço”?”. 

“Nunca toque em um espírito rancoroso”. A última coisa de que Alice se lembrou antes de ter sua alma sugada para fora de seu corpo, que foi, em seguida, ocupado pelo espírito de sua mãe. “Transição de corpos”, a única parte do livro que a escritora ignorou por achar muito irreal – até mesmo para lendas.


A jovem ouviu, depois, as derradeiras palavras de sua mãe – que agora apoderava-se do corpo de sua própria filha: “Considere este como meu ato de vingança. Enquanto eu estiver desfrutando da vida que fui privada anos atrás, quando engravidei, você estará aqui “apodrecendo” na enlouquecedora realidade deste portal. Adeus, filha.”

E então, a hospedeira do corpo de Alice saiu, deixando-a lá, incrédula com o que acabara de acontecer, destruída de todas as maneiras possíveis. Como sua própria mãe poderia fazer isso com ela?

A escritora reuniu suas últimas forças para tentar escapar, mas já era tarde. O portal já havia fechado. Esse era o fim de Alice, solidão escura e vazia, sem nenhuma magia que não fosse maligna.

Semanas depois, Ângela, chefe da Editora Ramalhete, recebeu uma carta. Ao abrir, logo reconheceu os escritos de sua melhor funcionária, que estava desaparecida. Encontrou, também, um bilhete que não havia sido escrito pela mesma pessoa, dizendo: 

Alice nunca voltará. Mas como sei da importância que esses escritos têm para ela, fiz questão de enviá-los.

Atenciosamente,

Amanda – mãe de sua mais brilhante ex-escritora.”


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