1° lugar – CONTO – PROSA ESTUDANTIL – INTERMEDIÁRIO – Colégio Arquidiocesano de Ouro Branco – VII Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"
Manuscrito
Maria Clara Vieira
3ª série Ensino Médio
Uns dos maiores presentes da vida humana são os instantes de lucidez, os momentos em que se
consegue entrar em contato com algo místico que nos leva a perceber alguma coisa que nunca
havíamos visto antes, esse é um desses momentos.
Me sento no parapeito da janela, borrada por um dia chuvoso, que ainda deixou registros no véu
acinzentado que cobre o céu. O jardim que fica na parte de trás da casa está úmido, mas as árvores
estão vivas como em um festival de primavera, os passarinhos voltam a aparecer, é como se não
existisse nenhuma tempestade.
Observo-te e percebo tanto o quanto a exaustão te consome. Sinto teu espírito, sinto que esqueces
que é viva. Sinto-te perdida há tanto tempo, te tornastes um rastro físico de alguém que já possuiu
magia na alma.
Balanço a cabeça, você se mexe, quem se tornou? Reconheço seus olhos, antes repletos de
alegoria, brilhavam em escuridão, quem levaste seu brilho estrelado?
Retiro meu cabelo dos olhos, enquanto observo os seus cabelos pretos voando ao vento.
Liberdade, era livre, talvez por isso tenha se tornado só, mas pessoas sozinhas poderiam desfrutar
de sua própria companhia, até que a solidão bate a porta, então ser só tornasse rotina. É o que
dizem, a liberdade mal usada se torna um fardo.
Vejo como respira, e escuto seu coração bater, que pensas sobre amor? Você poderia ser o poema
de amor mais lindo já escrito, vejo como sonha e anseia que, algum dia, alguém certamente vá te
escolher, e em sua mera mortalidade decide criar uma eternidade ao seu lado.
Vejo como pensa, sua mania de perfeição, mas de que adianta ser perfeita, se criou um
personagem? Poderia imaginar como está cansada, posso ver como seria maior em outra dimensão,
mas para você, nem se quer vale a própria menção.
Quão covarde há de ser para ter medo de ti mesma, teria sido tão brilhante, se não fosse covarde.
Cada pessoa conhece uma versão do que somos, nossa vida é um espetáculo de composição
inadequada.
Talvez se a peça fosse boa o suficiente, logo todos iriam ficar, mas o “logo” acabou.
Preso no manuscrito que rege a peça, preso entre a verdade e os sussurros sábios, existe a memória
de todos aqueles que foram tatuados eternamente em seus ossos.
Vejo seus passos lentos no jardim, como uma leve memória de uma dança, a ponta de seus pés
descalços sentindo a grama úmida enquanto rodopia em um ritmo que posso recordar.
Me recordo do seu talento, mas esgotaram todo ele, ao te dizerem que não bastava ser como era.
Eu sei que ainda acorda durante a noite, e escuta os ecos brutais gritando, de tudo aquilo que
poderia ter sido.
Levanto-me do parapeito da janela, penso, respiro nervosamente tentando segurar minha mente,
que incrivelmente se esconde do que é real, e não disfarça sua vontade de se tornar um rastro
perdido.
Volto ao parapeito, e sei o que pensas, pensas que tudo poderia ter sido tão diferente, quantas
coisas teria feito de outro modo se pudesse voltar atrás?
Não deveria ter se contentado tão fácil assim com o que eles dizem ser a realidade, o que te
custastes abrir mão de sonhar.
Os sonhos mortos que habitam em ti rodopiam pelo seus pensamentos e acendem uma lareira na
sala das memórias, e suas lágrimas de arrependimento mantém o fogo ardente, que te aquece para
aguentar sua escolha.
Sejamos sinceros, seu amor te deixou, não houve badaladas no caminho da igreja, deixou que teu
corpo morresse no altar por uma promessa de amor que nunca existiu, como pudeste ter tudo, mas
ter sido vítima de uma promessa vazia.
Vejo um vislumbre do que teria sido lendário, hás de concordar que não há luto por algo que não
existe certeza de que existiu, mas ainda teve de ser inesquecível, para aqueles que viveram um
vislumbre da realidade.
Infelizmente, não pode ser uma eterna criança, teve de crescer e com o tempo entender como é o
mundo. Deixou que roubassem suas estrelas, e aprendeu que não havia espaço para sonhos e
arrependimentos.
Assisto aos fantasmas dos meus sonhos dançando, anseio por tudo aquilo que poderia ter sido.
Danças, fantasmas, rodopias, assim como imagino. Saio de perto da janela e desço as escadas, meus
pensamentos se tornam altos demais para caberem dentro do meu próprio quarto, chego à porta do
jardim e afinal encontro com meu próprio reflexo, me via da minha própria janela.
Meu amado fantasma e eu, enlouquecendo, continuamos a dança, afinal não posso fingir que
entendo como isso aconteceu.
No fim, a única coisa que resta é o manuscrito, e seu último resquício de lembrança, são os ecos
se vão sussurrando.
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