De Poeta e de Louco, Nem Todo Mundo Tem Só um Pouco
Luiz Eduardo de Carvalho
São Paulo/SP
Antes de Baudelaire, talvez outros, mas, a partir dele e de suas Flores do Mal, com certeza, fundou-se uma corrente literária a reunir poetas que ousam atrevidos mergulhos nos abismos da existência ao centrarem atenções e eleger como objeto poético o feio, o grotesco, o errático e o escandaloso, concebendo o poema como algo repulsivo e infernal. Outros, como Rimbaud, em disrupção diversa, mas igualmente transgressora, fazem do ato poético uma expressão alquímica e ocultista.
O dia 6 de março de 2024 marca uma década desde a morte do escritor Leopoldo María Panero, considerado um "enfant terrible" da poesia espanhola que, em sua obra, dialogou com essa tradição de subversão literária e de costumes, elevando sua voz escatológica e revolucionária, subvertendo todas as normas de decoro e bom gosto e revelando as sombras e tabus de uma sociedade doente. Ele optou pela longa travessia pelos “bosques da loucura”, escolha que lhe custou o elevado preço do cárcere e da incompreensão.
Assim, Panero tomou para si o tema da loucura como recorrência biográfica e fez de sua literatura um instrumento de denúncia da falência das instituições modernas, principalmente dos Hospitais Psiquiátricos. Anarquista, pederasta, satanista, bêbado, vagabundo e louco são alguns dos termos pejorativos aplicados para conferir-lhe o contorno do desajuste social e justificar sua internação.
Como nos ensina Vinícius Silva de Lima, “a autocontemplação, aliada a uma postura autodestrutiva, é um dos pontos chaves de sua obra.” Nisso, irmana-se a Antonin Artaud, o francês que propõe o Teatro da Crueldade como um grito de protesto contra todas as formas de linguagem que aprisionam o ser humano, rejeitando as limitações habituais de seus poderes e tornando infinitas as fronteiras do que se convencionou chamar de realidade. Assim, repudiando os valores sociais vigentes, Panero propõe seu equivalente da crueldade, numa poética que espelha a dramaturgia encenada por Artaud.
Seu pai era um poeta oficial do franquismo a quem o jovem Panero opôs-se desde a tenra juventude, quando se inteirou da política e ingressou no Partido Comunista Espanhol para militar contra o ditador Francisco Franco. Decorrente dos arroubos dessa primeira transgressão, acabou detido e tomou contato com as drogas pela primeira vez dentro dos muros do presídio. Foi o estopim para uma vida errática, entregue ao alcoolismo e vitimada por intensas crises depressivas que o levaram a duas tentativas de suicídio consecutivas. Esse conjunto de comportamentos levou seus pais a interná-lo quando ele tinha apenas vinte e um anos de idade.
Viveu até os sessenta e cinco entre pensões baratas, bancos de praças e hospitais psiquiátricos, mantendo uma verdadeira vida de “outsider”. Com isso, também nas palavras de Vinícius Silva de Lima, “Panero tornou-se um dos únicos casos de poetas realmente malditos conhecidos na moderna literatura espanhola.”
Para ilustrar um quase nada da densa e perturbada poética deste que é considerado o último poeta maldito moderno da Espanha, transcrevo uns versos seus, aliás, o poema mais pertinente a essa data funesta dentre os que encontrei entre seus perturbadores escritos:
Dedicatória
Mais além de onde
a vida ainda se esconde, resta
um reino, e resta cultivar
como um rei sua agonia,
fazer florescer como um reino
a suja flor da agonia:
eu que a tudo prostituí, ainda posso
prostituir minha morte e fazer
de meu cadáver o último poema.
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