POR UMA CABEÇA
Marina Barrichello Marone São Paulo/SP
“Por una cabeza,
Todas las locuras”
Por una cabeza, Carlos Gardel
A tietinga voa e repousa, suavemente, na estaca de madeira mofada do curral. O sol brilha, e faz a pena longa da cauda luzir como um rabo de cometa. Adiante, cercado por um quadrado de arame farpado, Amargo pasta, lento, e sacode o rabo para espantar as moscas. Ruminando a grama, levanta a cabeça, sendo acertado por uma bala no meio do movimento.
A ave alça voo com o estrondo, e o boi tomba devagarinho para o lado, como uma peça de xadrez. O choque do corpo musculoso contra a terra batida levanta uma aura laranja no ar. O céu é azul, vívido como o sangue que escorre do pescoço de Amargo. O boi afoga-se no próprio líquido, e escancara a boca cheia de grama. A língua grossa e roxa pendura-se para fora, buscando ar. O sangue borbulha, tingindo-lhe os pelos escuros, e o animal engasga.
— Amargo! — o fazendeiro Jeremias grita, um rifle nas mãos calosas. Escancarando o portão, corre para perto de sua única cabeça de gado. Os cílios longos de Amargo já não dançam e seu corpo não estrebucha. A poça vai crescendo, umedecendo a terra clara, e quanto maior fica o círculo, maior é a tristeza e o desespero de Jeremias.
— Puta merda! — ele encosta a arma e ofega, a garganta seca feito couro. De repente, percebe o vizinho, na propriedade adjacente. Jamião, sentado em um banquinho na varanda, escova um rifle, tirando a pólvora acumulada. Apesar do som do tiro está tranquilo, ao lado de uma lata de óleo e um pano preto. Nem percebe quando Jeremias o encara com olhos salgados de ódio.
Jeremias Oliveira e Jamião Gominho nunca se deram bem. As famílias eram rivais desde o período da imigração nordestina para São Paulo, quando se assentaram no mesmo lote e começaram a brigar por causa da terra. Mas a mágoa do fazendeiro por Jamião não vem dos antepassados: vem de Cabritinha. Betinha, ou Cabritinha, era sua irmã gêmea. Moça miúda e magrinha, tinha um cabelo fino, um nariz vermelho e os dentes da frente separados. Andava trotando os pés cheios de feridas e, na infância, era companheira de Jeremias de caçar gabiru. Iam os dois, com pedaços de pau e uma goiaba aberta, para o fundo da granja, onde havia uma grande pedra chata. Depois de posicionar a fruta em cima, escondiam-se e esperavam. Formigas, moscas, besouros, lagartas e passarinhos passavam até que, com alguma sorte, o bicho escolhido chegava. Aproximava-se, em passos ligeiros e parava, brusco, sondando o perigo. Nesse instante, os irmãos ficavam arrepiados, as palmas das mãos suando contra a madeira. Com mais confiança, o gabiru finalmente subia na pedra e enfiava a cabeça na polpa. Nisso, os gêmeos metiam cipuadas no animal, até os ossos quebrarem e a vida morrer. Finda a nojeira, iam mostrar a carcaça pros outros irmãos, cheios de orgulho, segurando o bicho pesado pelo rabo. Um dia, Cabritinha foi caçar, sozinha, no terreno dos Gominho.
A criança esperava, atenta, a sua presa, quando Jamião, na época com 17 anos, a avistou da janela. Ela usava um vestido curto de chita e, empinada com o pedaço de pau no ombro, deixava a calcinha à mostra. Ferino, o adolescente tirou o gibão, a jabiraca e as botas, lambendo os beiços. Hesitou, por um minuto, mas ganhou coragem. Saindo pela porta da frente, se aproximou de Cabritinha distraída a passos lentos. Pisava a relva alta com cuidado, e não fazia nenhum barulho. Assim que chegou perto, feito uma raposa no galinheiro ou uma cobra no berço, Jamião avançou na menina. O pedaço de madeira caiu. Betinha ia gritar quando ele tapou-lhe a boca e as ventas com as mãos. A criança se debateu, mordendo a mão do agressor, mas logo seus músculos tensos amoleceram e ela esmoreceu, desmaiada, nos braços do vizinho. Acordou horas depois, no meio do mato, sem vestido. O sêmen, rosado
por causa do sangue, escorria grosso como azeite do meio de suas pernas. Desde esse dia, Cabritinha nunca mais foi caçar gabiru. Morreu no ano seguinte, depois de ingerir veneno de rato escondida. Na hora de virar anjinho, chamou Jeremias e segredou-lhe, cheia de vergonha, sobre o que acontecera nos Gominho. Em seguida, foi escalando um céu cheio de goiabas e gabirus, sussurrando coisas sem sentido. Quando Jeremias contou aos pais o que ouviu, não lhe deram razão, pois Cabritinha falecera em meio a delírios. Apanhou muito em seguida com um cabo de vassoura.
A vida do fazendeiro coalhou em dor. O gado, sua única cabeça de gado, não podia ter outro nome: Amargo. Nesse exato momento, Jeremias sente uma coisa que não consegue explicar. Seu corpo esquenta, o sangue em ebulição, e suas artérias dilatam e comprimem. Os olhos estão opacos como o do boi assassinado. É a gota d’água. Tirara-lhe tudo! Até o boi! Oliveira pega o rifle e caminha para a varanda de Jamião, que apoia a espingarda no banquinho e se levanta. Sem dizer nada o fazendeiro levanta o cano da arma e atira em Gominho.
Da janela da casa, o filho de Jeremias observa, a boca aberta e o rosto alvo. A pistola que pegara escondido do pai treme nas mãos do pequeno. Uma tietinga voa no céu.
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