4° LUGAR – CONTO – PROSA INTERNACIONAL – VII Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"

 A ALAMEDA

Alberto Arecchi Pávia/Itália



A estrada Vigentina é uma das estradas que ligam as cidades de Pavia e Milão, nos campos da Lombardia (Itália). Acredito que o nome derive da distância em linha reta entre as duas cidades: vinte milhas romanas, ou seja cerca de trinta quilômetros. A fronteira entre os territórios de Milão e de Pavia era marcada por um tortuoso curso de água, que ao longo do tempo ganhou nomes diferentes e que podia inchar muito no período chuvoso. Aconteceu assim, desde a época romana, que a estrada naquele troço ficasse arruinada pelas cheias e depois ficasse atolada durante muito tempo. Por isso, na Idade Média, os traçados rodoviário sofreram diversas modificações, de forma a contornar os pântanos e limitar a construção de novas pontes. Houve assim diversos traçados, no tempo, para coligar as duas cidades. Os nomes de localidades, como Terzo (terceiro), Quarto, Quinto ou Décimo, ainda recordam a passagem daqueles troços de estrada que faziam parte de um percurso principal e depois foram abandonados. Eram nomes de “miliários”, lembrando as distâncias de uma ou outra cidade.

Ainda me lembro como, na minha juventude, o percurso asfaltado da Vigentina, em alguns trechos retos bastante longos, era ladeado por árvores de choupos itálicos ou lombardos, aquelas plantas lindas, com forma quase de ciprestes, que são fáceis de ver nas paisagens lombardas das pinturas de Leonardo da Vinci. Árvores típicas da fértil planície da Lombardia, que identificavam de longe o percurso da estrada.

Eu viajava por essa estrada desde os meus tempos de universidade, quando frequentava o Politécnico de Milão e me deslocava de motoneta. A Vigentina continua até hoje sendo minha rota preferida quando tenho que ir a Milão. Nos trechos retos arborizados, orientados aproximadamente de sul para norte, os raios solares geravam um efeito alternado de luzes e sombras, que em certas velocidades era hipnotizante, principalmente no final da tarde, com a luz solar baixa e lateral. Acredito que seja a razão, ou uma das principais razões, pela qual, com o aumento da velocidade dos veículos automóveis, se decidiu pelo corte daquelas árvores. A estrada perdeu em beleza, mas talvez tenha ganhado em segurança.

Tinha terminado os estudos universitários, tinha um carro e continuei a viajar pela estrada Vigentina quando tinha que ir a Milão. Uma tarde, a caminho de casa, tranquilo, eu ouvia música no rádio. O claro-escuro alternado da luz do sol e das sombras dos choupos, ao longo das retas, me embalava como o ritmo de uma canção de ninar. Hipnotizando-me, como eu disse, e me distraia com outros pensamentos além de conduzir o carro. Tanto que a mente seguia seu próprio caminho, que era outro. 

A oscilação da luz tornou-se insuportável. Com um esforço de vontade, consegui parar numa ponte que atravessava o fosso à beira da estrada, na entrada de uma pequena estrada que dava acesso ao campo.

Tive um longo momento de inconsciência, com todas as minhas sensações perturbadas pela percepção daquele ritmo de luzes e sombras.

Recuperei meus sentidos. Eu estava me movendo novamente, avançando pela estrada, mas não estava mais ao volante do meu carro. Demorei algum tempo até perceber que estava numa espécie de carruagem que se movia à velocidade do trote de um cavalo, sofrendo mil solavancos, devido à rugosidade do piso e às rodas com aros de ferro. A estrada ainda nem era asfaltada. As duas fileiras de choupos, nos lados da avenida, eram muito mais jovens do que eu lembrava. Até minhas roupas mudaram, agora tinham um formato típico de tempos antigos, eu vestia um tabardo preto e um grande chapéu de pano. Um florete pendia do meu cinto.

Os choupos jovens e a velocidade reduzida já não geravam o efeito alucinatório que me obrigara a parar. Continuei pela estrada, em direção à minha casa, mas já sabia que a minha casa ainda não deveria existir, pois ainda não tinha sido construída.

Alguns quilômetros mais adiante, fui mandado parar por um posto de controlo: um cavaleiro, armado de espada, com botas e chapéu emplumado, ladeado por dois homens de armas com capacetes de aço, armados com alabardas. Captei imediatamente o sotaque espanhol nas perguntas do oficial que me interrogava e tive a perspicácia de responder-lhe num castelhano perfeito. Isso aliviou as suspeitas do meu interlocutor e me deu crédito aos seus olhos, fazendo-me evitar perguntas sobre meu local de residência (que eu sabia ser inexistente, no momento do salto repentino no tempo). O meu conhecimento da história da minha cidade fez o resto: depois de algumas frases, já não pesava mais nenhuma suspeita contra mim e fora agora reconhecido como habitante credenciado daqueles lugares. Fiz um rápido cálculo mental: os espanhóis dominaram estas terras de 1525 a 1700, por isso tinha que estar num momento entre esses dois séculos.

É claro que o meu novo meio de transporte era muito mais lento do que o carro que eu dirigia antes da viagem no tempo. Assim demorei e cheguei ao portão da cidade pouco antes do pôr do sol. Nunca imaginara como fosse a entrada, passando através do baluarte e dum dublo portão fortificado. Na luz agora muito mais fraca, tochas eram acesas para iluminar o posto de guarda e a rua. Dado o sucesso que tinha tido com o patrulheiro ao longo da estrada, usei também o truque de me expressar na língua castelhana, misturada com algumas expressões do dialeto local, que devia ter sido a língua principal dos cidadãos lombardos naquela época. Passei nos cheques, dando um endereço na cidade, designado através dos parâmetros da freguesia e do palácio nobre mais próximo da minha destinação (o primeiro que me veio à cabeça). Não tinha mercadoria nenhuma para declarar na alfândega e entrei na cidade rapidamente.

Naquele mesmo dia, ao pôr do sol, era a hora marcada para uma execução capital. O rufar dos tambores assombrara os ouvidos até meados da manhã, enquanto os carpinteiros erguiam um cabresto na Praça Grande. O condenado era um ex-oficial da guarda, condenado por alta traição. Somente nestes casos a execução ocorreu na praça principal da cidade: ladrões, bruxas, hereges e outros criminosos foram executados fora da cidade, num campo do outro lado do rio Ticino, denominado “o campo amaldiçoado”. Até a forma como a sentença era executada era diferente: o policial era decapitado com pesado machado duplo, enquanto os criminosos comuns eram enforcados ou, nos crimes mais graves, queimados na fogueira.

O centro da cidade fervilhava de gente que vinha de todos os lugares, para ver o espetáculo. Foram acesas muitas tochas que iluminaram toda a praça, enquanto as sombras do sol se alongavam.

Uma companhia de soldados alinhou-se entre o palco e a multidão, enquanto um grupo de cavaleiros monitorava a segurança das duas ruas imediatamente adjacentes. As autoridades ocuparam os seus lugares na galeria do Palácio municipal, para testemunhar a execução. Finalmente, quando o sol estava prestes a se pôr, o carrasco encapuzado apareceu no palco, segurando o pesado machado na mão. Quatro homens armados escoltaram o condenado desde a prisão, que ficava na torre, ao pé do Palácio municipal, atravessando o pátio, saíram do arco baixo que dava para a praça e o fizeram subir no palco. Os tambores silenciaram. A leitura da sentença, uma rápida absolvição final por parte do padre, enquanto dois irmãos da Companhia de São Roque erguiam bem alto, diante do povo, um grande crucifixo de madeira e gesso. Finalmente, ao aceno do Governador, um prolongado rufar de tambores cobriu a ordem ríspida dada pelo Oficial da Guarda, o barulho surdo do machado no cepo e o baque da cabeça do condenado, que caiu no cesto ao lado.

Acabado o espetáculo sombrio, preocupei-me em procurar um lugar onde pudesse passar a noite. Entrei na pequena igreja paroquial de São Teodoro, no bairro dos pescadores, na part baixa da cidade, ao pé do rio Ticino. Escolhi um lugar isolado em um corredor lateral, agachei-me no chão e enrolei-me em minha capa, tentando meditar e pensar no que havia acontecido. Logo, no escuro, cochilei. Acordei de manhã, quando as primeiras luzes entravam pelas janelas da abside e da cúpula. Prometia ser um lindo dia de sol, um sol frio de inverno. Por uma porta lateral, entrou uma velha mulher, pequena. Devia ter setenta anos, mas caminhava rapidamente sobre as pernas finas, cobertas com grossas meias pretas de lã. Toda a sua figura estava coberta de preto, com roupa de estilo obsoleto. Ela segurava um rosário nas mãos, com grandes contas tilintantes. Olhou para mim só por um momento, com olhar penetrante. Caminhou em um amplo círculo, murmurando orações e acendendo algumas velas. Me deu outra olhada rápida e se dirigiu para a saída. Não sei por que, a segui. Saí para a rua, coberta de neve. Nenhum veículo passava e ninguém limpara as ruas. Apenas uma pequena faixa ao longo das fachadas era transitável, protegida pelos beirais das casas. Percebi que as ruas, as casas, não eram iguais às que eu conhecia, mas era um ambiente familiar. Movimentava-me instintivamente, sem dificuldade, tinha a íntima consciência de estar na minha própria cidade, como era há quatrocentos anos. Eu sabia que a mulher de preto sentia minha presença atrás dela. Ela nunca olhou para mim, mas tinha certeza de que eu a estava seguindo. Caminhamos por ruas e vielas até seu casebre. Um corvo depenado pulava na frente da porta, dando as boas-vindas a todos que compareceram. Quando ele me disse: – Bom dia, senhor! – a velha finalmente se virou e fez sinal para que eu entrasse. Ela tinha um gato, claro, e era preto. Era uma mulher agradável, nada assustadora. O nome dela era Tereza. Conversamos e bebemos algumas taças de vinho. Um vinho áspero, franco, com um sabor que há muito não gostava.

Tereza era especialista em poções, sabia fazer caldos e decocções saborosos e restauradores. Ela não se considerava nem uma bruxa nem uma curandeira. Fiquei conversando com ela por apenas dez minutos, uma hora ou o dia inteiro. O tempo não passava, ou talvez eu tenha perdido a noção disso. Ela me contou que tivera uma visão, nos campos, fora dos muros da cidade. Descreveu-me a figura diáfana de uma criança que lhe apareceu e pairava no ar, sem tocar o chão com os pezinhos. Se Tereza tivesse sido uma mulher piedosa, encerrada numa cela de convento e dedicada aos sacramentos, ou uma pastora vivendo numa época de conflito social, a sua visão teria sido classificada como “celestial” e uma causa de beatificação teria sido iniciada, mas o que poderia esperar uma mulher abandonada que vê fantasmas na floresta, em uma terra controlada pelo próprio imperador católico da Espanha? O pelourinho, a tortura, talvez a estaca...

Tereza ofereceu-se para me acompanhar ao campo, ao local da aparição. Não era fácil caminhar na neve ainda profunda, derretida pelo sol na superfície e depois endurecida pelo frio da noite. Meus pés estavam molhados e eu sofria de um frio cortante. De repente, além de uma vala, vi um redemoinho que tomava a forma de uma menina etérea, emaciada, sensível ao frio, vestida com uma longa camisa branca, um laço rosa nos longos cabelos, os pés nus erguidos do chão. Fiquei paralisado de surpresa. Quando me virei para falar com ela, Tereza havia desaparecido.

O redemoinho girou em minha direção, como se quisesse passar por cima de mim... Mas se dissolveu como a chama de uma vela. A menina diáfana desapareceu no ar. Uma leve pena, o suspiro de uma andorinha ou de um fio de palha, flutuava no ar puro. Era uma pequena fita, de cor rosa pálido. Eu peguei na hora. Fiquei sozinho no meio da neve sem fim. Ao longe, inacessível, vi de um lado a floresta e do outro as muralhas e os telhados da cidade, as torres, os campanários e mil chaminés fumegando contra a luz, na luz do pôr do sol.

Acordei no meu carro, na pequena ponte, no lugar onde o tinha deixado, quando parei, na tarde do dia anterior. Minha cabeça estava apoiada no volante. Já não tinha nem tabardo nem chapeu. Meus pés estavam secos, sem vestígios de resfriado nem outras doenças. Uma fita rosa, úmida e desbotada, repousava sobre o painel do carro.


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