3° LUGAR – CONTO – PROSA NACIONAL – VII Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"

 Anjinhos

Alex Alexandre da Rosa
Jundiaí/SP

Todas as noites, o capataz da fazenda abandonava seu posto de vigia para se embocar na senzala. Ali, no silêncio atormentador, Teresa sofria os abusos da supremacia maligna. Incapaz de repudiar, invisível aos olhos medrosos dos demais infortunados e à parte de qualquer resposta de suas súplicas, ela padecia calada. Há tempos, perdera a fé. No entanto, o choro havia diminuído. Toda escuridão é abrandada com as cores da aurora. Teresa estava grávida.

No romper do dia, o corpo do capataz foi encontrado com uma estaca em seu coração. As agressões cessaram. Os olhos de quem fazia valer seu poder para desumanizar os escravos submissos, agora, mostravam a agonia de uma morte lenta. Uma morte que não passaria despercebida. Inácio, ainda que satisfeito – mais aliviado que contente –, sabia que viriam atrás dele. Tinha jurado de morte o tal homem quando ficou sabendo das atrocidades que ele fazia com sua amada. Ele o mataria, sem pestanejar, se tivesse oportunidade, mas não o fez. Outro tirou a honra de suas mãos. 

Antes que o sol pudesse secar o orvalho da noite, Inácio estava preso a um vira-mundo e usando uma focinheira, enquanto decidiam o que fazer com ele. O olhar corajoso de quem esconde as cicatrizes no corpo receava uma dor tão peculiar e íntima. 

Dois capatazes entraram no recinto. Com uma calma diabólica, colocaram sobre a mesa um pequeno objeto de ferro com dois buracos e parafusos. Inácio sabia do que se travava; anjinhos. A barbárie humana excedeu os limites da monstruosidade. O escravo já tinha passado por muitas coisas naquele inferno. Todos os tipos de mutilações que diziam ser para purificá-lo. Penas e torturas convertidas em invenções sádicas; a palmatória, o tronco, os açoites… tudo isso fez com que se tornasse destemido e forte o bastante para suportar os castigos. Contudo, desta vez, o suor em sua fronte era real. Sentiu o sangue esfriar em seu estômago. 

Tiraram lentamente o vira-mundo e a focinheira de seu corpo e, antes que pudessem submetê-lo ao artifício que levava o nome de natureza incompatível, trouxeram Teresa. O escravo respirou ofegante, deixando transparecer sua importância. Em agonia, suplicava para que a deixassem em paz.

Os capatazes, livres de qualquer compaixão, mandaram Teresa estender a palma de sua mão para cima. Um pedaço de pau surgiu. O grito ecoou pela fazenda. Os gritos iam diminuindo e se aprofundando em agonia a cada palmatória. A dor de Teresa era real, não se equivalia em uma balança justa, mas Inácio sofria a cada golpe, a cada lágrima e choro. Cerrou os punhos, respirou profundamente. Intentou um ataque, recuou – como sempre. Sabia que qualquer ato de imprudência ali custaria sua vida e a vida de Teresa.  

Havia satisfação nos olhares dos malfeitores, prazer na dor. Quando os gritos cessaram, os capatazes mandaram levá-la para fora do recinto. Seus olhares correram até Inácio, em uma maldade exposta. Teresa estava com as palmas das mãos esfoladas. Sobreviveria. Tinha passado por coisas piores.

Sobre uma mesa prenderam os dois dedões do escravo. O corpo de Inácio tremia antes mesmo de apertarem os parafusos. Sua respiração acelerada e os olhos arregalados davam indícios do pânico vindouro. Uma voz ecoou com costumeira autoridade: 

— Foi você quem matou o capitão?

— Não! 

Um breve aperto no parafuso. O suficiente para Inácio saber o que estaria à sua espera.

— Responda? Foi você?

— Não... 

Mais meia volta no parafuso. Uma contorcida de corpo, um suspiro de dor. Nenhum grito. Inácio, cuja perseverança tentava esconder o medo, juntava as forças de seus anos para resistir à tortura.

— Foi você? 

Não houve resposta.

Inácio temia as perguntas, assim como temia o silêncio. 

— Responda! Foi você? – gritou o capataz. 

O escravo, aflito, balançou a cabeça negativamente. Lá fora, Teresa pôde ouvir o grito da penitência. Chorou outra vez. Chorou além de suas lágrimas, além das profundezas de seu espírito. Os gritos aumentaram. O corpo de Inácio tremia involuntariamente; transpirava medo e sangue. A cada apertada no parafuso uma dor insuportável penetrava em seus sentidos. A dor era verdadeira. Inácio não suportava mais, ninguém suportaria. Confessou:

— Fui eu! Fui eu! 

***

Na praça da cidade, a tumultuavam curiosos e escravos obrigados a assistirem – como exemplo – à execução de Inácio por enforcamento. 

Acorrentado ao carrasco, com as correntes atrasando seus passos, o escravo percorreu os becos da cidade até o pelourinho. Inácio temia a morte, mas, paradoxalmente, estava aliviado pelo fim. Enxergava nela sua tão sonhada liberdade.

Em forma triangular, a forca se erguia sobre três moirões. O escravo sabia que não havia esperança. Uma vez condenado, o cativo não tinha apelo. A corda foi ajustada ao seu pescoço, amarrada às injustiças do tempo. Inácio procurou um par de olhos negros entre a multidão e encontrou. Teresa o encarou, confortada e triste. 

Dizem que as dores da alma sobrepujam as do corpo. Inácio sempre achou ser mentira. Não ali, pensava. Ali, as dores eram reais. Para ele, nada se comparava aos atos insanos que eram cometidos naquele canto do mundo, aos pesos daquelas correntes. Pensava assim até o dia em que viu o olhar de uma mãe ao ser separada de seus filhos. Aquela dor era maior… nunca se esqueceria. 

Assim como levaria para a eternidade o olhar de Teresa, que, com os olhos vermelhos e gratos, viu seu amado pagar um preço injusto, enquanto o medo e o amor pelo fruto em seu ventre silenciavam a vontade de se confessar.

Para Inácio, já não havia arrependimentos. Ele reconheceu quem havia cravado a estaca e, sob a angústia estabelecida na certeza de que faria tudo para defender um filho, assinou sua sentença. 

Teresa chorou; Inácio, não mais.


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