Ai tantos anos, Toninho!
Luísa Maria Ferreira Pinto de Lima
Santa Maria da Feira/Portugal
Na minha infância, a morte de um ente querido era longínqua, quiçá uma abstração. A minha avó, com quase cem anos, seria sempre eterna. Chamávamos-lhe vó Rosarinho.
A casa da vó Rosarinho era uma espécie de paraíso, porque eu corria para lá aos fins de semana e passava a vida a tentar apanhar as rãs no riacho, a jogar à bola no eirado com o meu irmão Nelito ou a brincar com a minha prima Rosita. A minha prima Rosita seguia-me por todo lado. Quando o meu irmão não andava por perto (ele entretinha-se frequentemente a puxar camionetas de madeira, feitas pelo meu tio Augusto de quem vos falarei mais adiante) eu e a minha prima brincávamos com bonecas, escondidos atrás das moitas, não fosse o meu pai aparecer de repente e chamar-me maricas.
Lá está ela agachada, a pegar nas bonecas com o desvelo das suas mãos de cetim para não as magoar. Tinha as unhas tão pequeninas! Chego a pensar que hoje detesto garras com pinceladas de gel, por causa das unhas pequeninas da minha prima Rosita.
Mas como vos contava, a casa da vó Rosarinho era um paraíso na terra. Na cozinha, os cheiros eram intensos. O café e a sopa fumegavam nas panelas de ferro com três pernas que enfeitavam a lareira. O pão cozia-se no forno a lenha, depois de vedada a porta com bosta de boi ou de vaca. Quando a bosta secava parecia cimento.
Em casa dos meus pais, eu não podia sujar os calções, mas aqui até me engalfinhava com o meu irmão no chão bafiento do eirado, e tínhamos grilos numa gaiola de plástico tratada com tanto esmero que parecia uma casinha em miniatura.
Enquanto sorvíamos a sopa a fumegar, a vó Rosarinho falava-nos da ninhada de gatitos acabados de nascer atrás do curral dos porcos e queixava-se que o burrico já estava tão velho como ela.
Em casa dos meus pais, não havia grilos, gatitos, porcos ou burricos, e ninguém comia em tronco nu, coisa que nos dias escaldantes de verão não incomodava a vó Rosarinho. Em casa dos meus pais, eu e o meu irmão vestíamos uma camisa lavada antes de irmos para a mesa e comíamos o silêncio uns dos outros. Os meus pais não falavam muito.
A minha mãe herdou a cor dos olhos da minha avó, mas os dela eram um noturno sossegado. Só muito raramente a via soerguer os lábios para sorrir. O meu pai, austero por natureza, não permitia que os nossos cotovelos atropelassem os pratos. Quando pedíamos licença para sair da mesa, autorizava com um acenar da cabeça e se queria demonstrar o seu agrado, dava-nos uma palmadinha nas costas, muito ao de leve, como se receasse amarrotar a nossa própria pele.
A vó Rosarinho vivia com o meu tio Augusto e a minha prima Rosita, filha dele. O meu tio era um homem de riso fácil e tinha as anedotas na ponta da língua. Dizia que era para afugentar os pesadelos e os maus pensamento Chefe dos bombeiros, ostentava um bigode farfalhudo com as pontas reviradas à espanador e usava um boné, tipo Charles de Gaulle. Tinha um ar imponente, mas quando abanava a cabeça, o boné descaia-lhe sob uns óculos enormes que lhe realçavam o rosto bonacheirão. Este meu tio foi, muitas vezes, o salva-vidas dos gatitos empoleirados no cimo dos plátanos. Quem sabe, os bichanos se metiam nessas aventuras, porque ansiavam o colo do Charles de Gaulle da nossa terriola. Quando o meu tio, “ Charles de Gaulle” me levava de mota para a escola, eu era um herói, se não fosse por mais nada, porque espicaçava a inveja do Tomé, o vizinho que me fintava a jogar à bola e me fazia esfolar os joelhos.
Não tenho memória da mulher deste meu tio. Quando entrei na puberdade, alguém me soprou ao ouvido, em segredo, que ela era bailarina e tinha fugido para Espanha.
Ele tinha um irmão que foi dado como desaparecido no Brasil. Chamava-se António como eu. Segundo as más-línguas, a nossa semelhança não é só no nome. Há quem diga que sou vaidoso como ele. Conta-se até que quando foi
para o Brasil, passou a maioria da viagem de pé, no convés do navio, para não amarrotar as calças. Eu cá para mim, sou mais parecido com o meu tio Augusto, porque embora a minha esposa não seja bailarina, nem tenha fugido para Espanha, sou um bom contador de anedotas.
Nesse tempo, os invernos eram rigorosos e as bátegas da chuva tilintavam nos telhados durante semanas a fio. Quando o rio transbordava, o Rossio, uma praça mesmo em frente à casa da vó Rosarinho, era um pantanal. O quintal transformava-se num lago, e os porcos, galinhas e patos nadavam em direção à cozinha, à espera da salvação do nosso Charles de Gaulle.
E já que referi o Rossio, não resisto a descrever-vos a primeira sessão de cinema da nossa terriola, realizada à luz dos gasómetros, nesta praça. A vizinhança levou cadeiras de casa. O suspense de tal novidade silenciou os espetadores até ao momento em que, na cena do filme, um comboio se aproximou a grande velocidade. As mulheres gritaram, os homens baixaram instintivamente as cabeças, deixando cair os chapéus, e as crianças, algumas a chorar, enrodilharam-se nas saias das mães. Eu, o meu irmão Nelito e a minha prima Rosita fugimos para casa apavorados e fomos espreitar o resto do filme em porto seguro – a janela da cozinha.
Sim, tinha que se ser a janela da cozinha, porque a da sala, também virada para o Rossio, estava sempre fechada.
Hoje, na lonjura do tempo, tenho a vaga sensação de que a sala da vó Rosarinho, trancada por uns reposteiros de veludo muito escuro, só via o sol no dia de Páscoa, dia em que o padre abençoava todas as casas.
Na visita do padre, fazíamos fila à volta da mesa recheada de iguarias para beijar a cruz. Eu procurava ficar sempre defronte do único retrato da casa, já lascado na moldura. Nessa foto, o meu avô, que nunca cheguei a conhecer, fixava os olhos muito vivos nos meus, como se eu fosse a máquina fotográfica. Parecia tão real que eu tinha ganas de lhe repuxar o bigode, a ver se ele me dizia alguma coisa. Ao seu lado, a vó Rosarinho, com uma tez muito branca e sem óculos, parecia uma menina, embrulhada numa blusa branca com folhos no pescoço e rendas no peito. Eu olhava alternadamente para a menina da foto e para as rugas da minha avó que agora lhe escondiam os lábios descarnados. Parecia-me irreal! Eu sempre a conhecera enrugada e com os olhos sorridentes por detrás dos
óculos redondos, como se já tivesse nascido velhinha, empoleirada nos tamancos a apanhar figos no quintal.
Eu não nasci no quintal da vó Rosarinho, mas foi ali que iniciei as minhas reflexões embrionárias sobre o sentido da vida e da liberdade. Sempre que erguia a cabeça para ver se havia nuvens no céu, deparava-me, num terreno mais elevado, com as campas dos defuntos, enfeitadas com flores e velas que tremeluziam como se fossem estrelinhas. Num espaço contíguo ao cemitério,
observava, com frequência, os presos a caminharem em círculos no pátio da prisão, numa espécie de ritual compassado, sempre igual. Era a sua hora de recreio. O arame farpado separava os mortos dos prisioneiros. A igreja também ficava ao lado de cemitério e, aos domingos, quer fizesse sol quer fizesse chuva, homens, mulheres e crianças usavam o seu fato domingueiro para ir à missa, à exceção das viúvas que se vestiam sempre de negro. Antes da missa, os engraxadores de sapatos sentavam-se na escadaria da igreja, a cerca de cem metros do Rossio, à espera da clientela e, quase em simultâneo, dava-se início ao noticiário das tragédias passionais da época. Um sujeito baixito, a roçar o nanismo, tocava acordeão e cantava em verso crimes passionais: era um jovem que matara o vizinho para casar com a mulher deste, era a Mariazinha que se enforcara porque os pais não compareceram na igreja no dia da sua comunhão, e tantas outras desgraças insólitas que faziam arrepiar as almas antes do santo ofício que a todos iria proteger e abençoar. Porém, das notícias políticas deste país pobre e inculto, nem vislumbre! Depois da missa, um indivíduo magricela, que usava suspensórios, colocava uma maleta preta em cima do tejadilho de um carro estacionado junto do coreto do Rossio e apregoava a sua pomada milagreira que sarava tudo, desde a caspa, piolhos, dores de barriga, frieiras, eczema e outras maleitas de qualquer incauto. Um macaquito fazia cabriolices em cima do tejadilho do carro para atrair a audiência e, assim, o povo ria, ouvia e comprava.
Os fins de semana decorriam sem assombrações, à exceção daqueles domingos em que uma carreta atravessava o Rossio em direção ao cemitério, transportando caixões brancos de crianças pequeninas, algumas bebés. Vivíamos no tempo de muita mortalidade infantil. Um silêncio lúgubre e sem lágrimas trespassava-nos a alma, mas as centenas de pássaros voltavam a
chilrear melodias trinadas em redor dos frondosos plátanos para nos alegrarem o coração.
Entretanto, fui crescendo e comecei a descobrir prazeres dos mais velhos no eirado da vó Rosarinho.
Nas noites animadas das desfolhadas, homens e mulheres sentavam-se a cantar no eirado, enquanto tiravam as folhas às espigas de milho. Quem encontrasse uma espiga vermelha, o chamado milho rei, tinha o direito de abraçar todos os presentes. A algazarra era tanta com a euforia ou o deleite de alguns abraços mais ousados, que eu e o meu irmão Nelito aproveitávamos a ocasião para nos escondermos numa espécie de cabana de índios, onde fumávamos cigarros feitos de barbas de milho e abraçávamos a nossa prima Rosita, quando ela aparecia, à socapa, para nos espiar.
Os nossos dias perenes deslizavam sossegadamente entre os girinos do riacho ao pé da figueira, as desfolhadas no eirado e a casa dos meus pais ali bem perto, até que, certa noite, a lua se deitou sem se despedir da vó Rosarinho. Com mais de cem anos, estava sentada na varanda de madeira que dava para a rua, e quando eu abri a cancela não disse: “Ai tantos anos, Toninho!”
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