2° LUGAR – CRÔNICA – PROSA NACIONAL – VII Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"

 Crônicas de um consultório de dentista

Nathália da Silva Gomes Rio Casca/MG


É cada uma que aparece nesta minha vida odontológica que até parece duas!  Bom, meu nome é Josefa Pingo Milagres, eu sou dentista em uma cidadezinha chamada  Pombos do Bom Fim, eu tenho trinta anos de carreira, e se o leitor nunca teve o prazer  de estar aqui não sabe a historia deste esdrúxulo lugar.  

Aqui existem duas famílias e uma disputa. Há muitos anos esta cidade não  existia, aqui era apenas o descampado e duas famílias tinham terrenos vizinhos, com a  construção da ferrovia uma vila foi se formando, sem nunca estas famílias terem doado  o terreno a órgãos públicos, apenas curiosos foram chegando e se amontoando no lugar,  portanto a cidade pertence metade aos Bernardes Resende e metade aos Rosário Costa  Barreto, hoje as famílias são rivais e não podem nem sonhar uma com a outra, mas a  razão primeira desta inimizade não foram as terras e sim foi a Dona Linda Maria, esposa  do senhor Zé do Rifle, que também era um amor platônico do senhor Aristides, que  acusa até hoje o Zé do Rifle de ter lhe roubado a moça.  

Hoje em dia há uma contenda judicial por causa da cidade. Quando eu  cheguei aqui, a cidade já era dividida, mas como eu sou a única dentista do lugar, meu  consultório foi construído na divisa das terras para que eu pudesse atender as duas  famílias sem ninguém precisar atravessar para o lado do outro, pois se isso acontecer  chove balas de revolver. Caro leitor, resolver as coisas no caroço de revolver aqui é  corriqueiro. Igual ao dia que o Senhor Poliacarpo, correspondente bancário descobriu  que sua esposa estava lhe traindo como o senhor Bentinho, dono da sorveteria, mas na  hora de pregar fogo no sujeito ele não honrou as calças e deixou por isso mesmo. Mas a  Severina, o nome da tal sujeita, também traiu o senhor Bentinho e fugiu para capital  com um mascate que passava pela cidade. Hoje é bem comum encontrar os dois  sentados no bar do senhor Berdimundo tomando umas canas e chorando seus chifres.  Amizade que o chifre uniu ninguém separa. 

Agora que o leitor está familiarizado com o lugar, vou contar o porquê de a  contenda atual ter começado. O cemitério da cidade também é construído na divisa entre  as duas terras, assim como meu consultório, a delegacia, a igreja católica e a igreja  evangélica. Pois só há um coveiro, uma dentista, um padre, um pastor e um delegado,  para ambas as famílias, de resto, cada família tem o seu. O senhor José Constantino  Campolongo Mercedes Bernardes Resende, patriarca dos Bernardes Resende, conhecido 

como Zé do Rifle, porque era caçador na mocidade, construiu uma mausoléu de  primeiro mundo, no ponto mais alto de cemitério que fica numa colina, dava pra ver  aquela monumental construção de qualquer ponto da cidade. Já veio até repórter da  capital para documentar o tal “Taj Mahal de Pombos dos Bom Fim” foi assim que a  assombrosa construção ficou conhecida nas redondezas.  

Zé do Rifle mandou trazer da Europa um mármore Carrara, chiquérrimo, e  colocou uns anjos que ele mesmo dizia que haviam sido feitos pelo próprio Aleijadinho  em pessoa, isso ninguém da fé, pois Zé do Rifle é chegado a contar vantagem, ele  mesmo conta que matou três onças de porte médio com uma bala, dois canivetes e um  lenço de seda, e cada vez que ele conta a historia sentado na porta do botequim de  Senhor Berdimundo aumenta a quantidade das onças, outro dia já eram pra mais de  trinta.  

Acontece que com a construção da linha férrea, houve uma nova medição  do terreno para poder pagar ao dono pelo transpasse da ferrovia e descobriram que as  terras onde estavam o mausoléu pertenciam Aristides Frutuso Carpato Rosário Costa  Barreto, aí a vaca foi para o brejo, pois ele jamais facilitaria a vida do rival que lhe  roubou a moça. De acordo com o escrivão que lavrou a escritura, o defunto que fosse  enterrado no tal mausoléu passaria para o lado dos Rosário Costa Barreto. Portanto,  nunca chegaram a um acordo, nem sobre quem seria enterrado lá e nem aceitavam  vender um pedaço das terras.  

Bom se o leitor está interessado a saber como isso interfere em minha vida,  eu conto agora. Certa feita, um nômade violeiro chamado João Sem Rumo, pousou aqui  na cidade, me chegou no consultório com um par de chapas, isso mesmo, dentaduras, dizendo que elas não adaptavam. Ao tentar ajustar as próteses notei que elas nada se  assemelhavam com a boca do paciente. Perguntei quem havia feito às dentaduras e ele  não soube me dizer, falou que não sabia por que não foram feitas para ele. Fiz uma cara  de espanto e descrença do que meus ouvidos haviam escutado. Ao ver o meu assombro  ele me contou o seguinte: 

- Doutora Zefa, eu estava na lá venda do seu Berdimundo, tomando umas  cana. Eu já esta com o juízo alto. Foi no dia que o Zé do Rifle e Seu Aristide, foram de  novo no cartório para ver se davam jeito na historia da tal catacumba. Seu Berdimundo  também já não tava muito são das ideia, e nos firmamo uma aposta. Aí ele falou que ele 

apostava até os dente que eles iam um deles ia para sete palmo de chão. Bão, eu nem  preciso falar com a senhora que ganhou aposta.  

Eu expliquei a ele que era melhor devolver as dentaduras pois de nada elas  serviriam para ele. Minha auxiliar, que foi apelidada pelos moradores de Terezinha  Boticão, cai na risada até hoje com esse caso.  

Neste mesmo dia, que é para não perder o costume, me chamaram no  escritório do tabelião, Seu Belarmindo, que era para eu servir de testemunha, de novo,  do acordo entre Seu Zé do Rifle e Seu Aristides, eles já tentaram resolver esta  contenda mais de mil vezes. Como não pertenço a nenhuma das famílias, sou imparcial  na situação. Bom, ficamos mais de quatro horas naquele disse me disse e nada de a  contenda se revolver. Eu já cansada e querendo ir para casa ver minha novela, sugeri  que o Padre Cleonir, que estava sendo velado na capela da cidade, que morreu de  velhice, fosse enterrado lá. Pois ele é homem de Deus iria acabar com a contenda, no  fim nem de um e nem de outro, mas de Deus. Os dois homens muitos religiosos, que  contribuíam para as festas da paróquia, não tiveram coragem de negar o lugar a um  representante de Deus, concordaram e mandaram que o padre fosse posto na tal  catacumba. Firmado o acordo, fomos nos para o velório dar a notícia para a família do  Padre Cleonir, parecia uma comitiva de politico em época de eleição. Ao dar a noticia  para a família, ficaram muito felizes com homenagem para o Padre Cleonir.  

Subiu para o sepultamento uma procissão que parecia até um show do Zezé  de Camargo, todo mundo estava lá. Sepultaram o morto, as velhas beatas da paróquia  chorando, um choro mais falso que do que nota de três, Dona Genonoveva mesmo,  vivia falando que o velho estava caduco. A mulher já estava até gorda de tanto comer as  hóstias escondidas na sacristia. Senhor Tiburcio dono da chapelaria ia à missa e dormia  o sermão inteiro. Senhor Cristófolo, médico do município nem o dízimo pagava,  falando que Deus não ama o dinheiro, mão de vaca que só ele, e ainda cobra trezentos  cruzeiros a consulta. Dona Pipolina, dona da Floricultura, sempre procurava briga com  as catequistas da paroquia, ela era doida para cantar no coral da paroquia mas a Dona  Carmelita, regente do coral, nunca deixava por causa de briga que as duas tiveram por  causa um metro de chita, estava lá num choro sentido. Senhor Pitolomeu, dono da  Botica, cheio de mania esquisita, todo começo do mês passava água benta nas porta do  seu comércio, ele dizia que assim nenhuma mazela o alcançaria. E eu não quero nem 

falar da Dona Felisbina, uma senhora filantropa da cidade, esta encharcou meu ombro  de tanto chorar, pensei que ela até iria desidratar, até um desmaio a velha ensaiou fazer,  mas isso não foi nada comparado ao chilique que ela teve quando soube que a neta ia  ser mãe solteira. 

Quando acabou o chororô, os discursos e pão com salame e guaraná que  eles ofereceram para reforçar o bucho de quem acompanhou o cortejo, viemos todos  embora. Foi um enterro com um ar fúnebre mesmo, o céu estava cinza chumbo parecia  que ia cair um pé d’água. Entrei no meu velho fusca vermelho e sai acelerando para  casa. Quando deu a noite começou uma leve chuva, que aos poucos foi se  transformando em uma imensa tempestade, o centro da cidade começou a inundar,  parecia que o mundo ia vir abaixo.  

No dia seguinte, quando ia para meu consultório, vi um amontoado de  indivíduos na praça, meio incrédulos, desci de meu fusca e fui observar o que  acontecia. Quando cheguei deparei-me com o caixão de padre Cleonir e vários outros na  praça. Perguntei aos curiosos que estavam na praça o que havia ocorrido, mas ninguém  soube responder. Foi quando chegou o senhor Nestor dono da Funerária, explicando  que houve um deslizamento no cemitério, o topo da colina, onde era o tal mausoléu veio  abaixo, e a enxurrada que se formou por causa do temporal, trouxe os defuntos para a  praça e mais uns três desafortunados desceram rio abaixo. Bom, estes nunca foram  encontrados.  

Os defuntos foram enterrados em novas covas, e mausoléu nunca foi  reconstruído. Mas, por causa desta historia aqui existe um dito quando alguém foge de  uma briga: Esse aí foge de briga igual ao padre Cleonir foge da catacumba. 


Comentários

  1. Parabéns Nathália.De você não esperaria menos.Você é um exemplo.Satisfação ter sido sua professora.
    (Eliane)
    (Eliane)

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