A mãe de Guernica
Victória Abdias Mendes
Clayton, NC, EUA
Dentro do ônibus, olho a cidade de Madrid e toda sua luz acinzentada sobrevoando a tarde. Victor, no meu colo, repousa a cabeça suavemente próximo ao meu seio. Mesmo com o tremular da besta de ferro e o crocitar de vozes ao redor, ele permanece incólume e adormecido. Um quarteirão depois, os muros altos do museu despontam no horizonte escuro. Levanto-me com os braços abarrotados enquanto o motor diminui e para. Desço as escadinhas, e bem no momento que atravesso a entrada do casarão, meu filho desperta. “Mamãe” ele chama enquanto caminhávamos, “mamãe” ele chama por toda galeria e salões, “mamãe” e “mamãe, olhe para mim” ele chama.
- MAMÃE!
Me encolho sob o som alto de sua voz e o revirar dos olhos das pessoas. Não era a primeira vez, estando solteira com um filho pequeno, que eu recebia tais olhares. Alguns de pena, outros de asco. No fim, eles diziam:
- Mas onde está o pai dessa criança?
“Morreu” penso em responder, mas seria mentira. A verdade é que eu não sei, não sei de seu paradeiro desde o momento que ele descobriu que seria pai. Então eu digo:
- Somos só eu e ele.
E recebo:
- Você faz tudo isso sozinha?!
Aceno com a cabeça para cima e para baixo.
- Sim.
Corro na direção da pequenina criança, puxando-a pelo braço para longe de uma grande estátua marmorizada.
- VICTOR! Não vou dizer novamente para você se comportar! Ouviu bem?
Ele resmunga e esfrega o nariz ranhento quando o pego no colo.
- Desculpe, mamãe.
Agora, já bem longe da entrada, o lugar parecia ter vida própria. Com corredores que abriam espaço para os enormes grupos de pessoas passarem devagar, todos na mesma direção. Às vezes, entretanto, alguns desses turistas se aglomeravam em alas, em certas encruzilhadas, de tal forma que era impossível passar. E por isso me encontro aqui, enclausurada, com uma criança temperamental de 4 anos ao meu encalço. Estico bem o pescoço, mas não há mais nada a frente que um mar de cabecinhas de boné e paus-de-selfie. Checo a hora, preocupada, era tempo de dar a Victor um pequeno lanche, antes que ele chorasse; ou pior, jogasse o corpinho no chão e se debatesse em um grande espetáculo de birra. Tateio dentro de sua mochila atrás do saco de biscoitos, em vão. O espaço ao meu redor era tão minúsculo que eu não poderia afastar nem ao menos um de meus pés, ou ficaria sem ter onde pousá-lo novamente.
- Argh! Mas que droga….
Puxo de volta a mão para longe da bolsa, bem quando ouço atrás de mim a voz de um robusto rapaz, em inglês rápido e confuso.
- Do you need help, ma’am?
- Desculpe, eu não falo inglês. Não entendo você…
Ele sorri e aponta para um corredor, com um sofá redondo e confortável. Depois aponta para mim, como quem diz: “entendeu?”, e eu concordo, agradecida. Saio aos tropeções, bato em uma ou mais pessoas até sentar rapidamente num dos últimos espaços vagos. Victor permanece em pé à minha frente, segurando seu biscoito e garrafa de suco enquanto dá pequenos pulinhos de felicidade. E eu finalmente fecho os olhos. Por volta das 19 horas, o museu se preparava para fechar as portas. As milhares de luzes eram apagadas uma a uma, e já não se via gente por lugar nenhum. Atravesso com minha sapatilha baixa, acolchoada, pelo eco. Meu filho, sonolento, segurava com uns dedinhos minha saia e a outra mão enfiava na boca. Num dado momento aproveito para tirar uma foto, afasto a câmera frontal o suficiente para que não deixasse minhas olheiras aparentes no retrato, e dou o click. Victor se afasta, passando debaixo de minhas pernas e correndo bambo na direção de uma grande tela solitária.
- CAVALINHO. Cavalinho, mamãe. Olha!
E de fato havia. Um cavalo desfigurado com uma enorme boca e língua afiada, que se mesclava e fundia ao horror do quadro. Era quase impossível vê-lo e mais impossível não notá-lo. Eu leio o nome escrito com letras negras e imparciais: Guernica. Olho para o lado, Victor continua fascinado pelo monstro de quatro patas. Abaixo a cabeça e logo dou de cara com uma mulher chorosa, desesperada de tal forma, que me desequilibro e dou passinhos para trás. Diferente do animal, eu consegui olhá-la. Suas mãos grandes demais com dedos gordos feito salsichas, seios tortos e olhos derretidos. Ela embalava o filho morto, seu filho morto. E a dor era tão real como foi desde o primeiro dia que foi pintada a mão, 84 anos atrás. Imagino então a vida dessa mulher, desse fantasma que nunca chegou a ser real, mas que emulava a realidade de tantas outras de seu tempo. Havia ela nascido rica, ou não? Não, ela nasceu camponesa, cuidava da terra. Ajudava os pais na colheita e no plantio. Tinha irmãos? Alguns. Alguns que sobreviveram à morte na infância, a subnutrição. Que sobreviveram a doenças, lutas e guerras. Mas não a própria Guernica. Era bonita? Não tanto. Mas era obediente e recatada, por isso casou nova, como era de costume; com um qualquer um tantão de anos mais velho que ela. Não deve tê-lo amado, e muito menos ter sido amada; não era do feitio das mulheres esperarem tanto de seus senhores. Assim, viveu solitária entre sol, chuva, sol e tudo novamente. Até o momento que esperava uma criança no ventre. Não saberia dizer, eu, se aquele que segurava nos braços era seu primeiro ou último filho. Mas de certo, era dela, e lhe fora arrancado cedo demais. Seu filho nunca mais lhe sorriria, lhe chamaria, existiria. Me aproximo de sua figura. Gostaria que ela me dissesse do depois, de sua vida depois que as cinzas e a poeira daquele dia foram lavados com a água da chuva. Onde ela foi? Quem ela foi? Morreu apenas mãe, sem nome? Só mãe? Como Maria, nossa senhora, lembrada pelo filho na Cruz? Não, ela foi. E foi sem demora, com culpa e solitude nos ombros, e recomeçou. Pois se é esperado, ontem, hoje e sempre. Olho mais uma vez, buscando as lágrimas que seus olhos não rolaram, buscando pedaços de sua vida desfigurada. E não os vejo. Quando finalmente dou as costas a Guernica, o calor de meu filho envolve meus braços. Seu coração bate junto ao meu, ritmado e feroz, e ele não chora nem grita como normalmente faz. Tem os olhos brilhantes de admiração e da tchauzinho ao corcel. Beijo seu cabelo longo, loiro avermelhado, que o menino morto jamais teria. Penso em perdê-lo, em não vê-lo nunca mais, e meu rosto se transforma em uma careta amarga. Balanço a cabeça. Não, não, não e não. Olho novamente em direção ao quadro e sussurro ao meu bebê:
- Amo você
- Amo você, mamãe - ele responde.
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