Quilômetros e quilos
Gilmar Luiz de Medeiros
São Geraldo/MG
É com lágrimas nos olhos e profundo pesar que me preparo para dar o último adeus aos pneus velhos do meu carro, companheiros fiéis e guerreiros de grandes aventuras, após convivermos bem e saborearmos os louros de uma sincera e respeitosa amizade, que durou cerca de trinta e um mil quilômetros. Bons momentos vividos, e antes de descartá-los corretamente e de maneira sustentável, certamente direi aos nobres, com sinceridade: missão cumprida!
Mas eis que vem o bonequinho do Mal, o diabinho que reside no lado capitalista do meu cérebro, e em um determinado momento da noite cisma de me tirar o sono. 31.000km? Não é pouco?
Procuro uma página de internet especializada no assunto, e descubro que o tempo de vida útil de um pneu é, em média, de dez a oitenta mil quilômetros. O que faz um pneu durar mais ou menos tempo, tem lá detalhado, são vários fatores.
E tem vários, mesmo. Mas confesso que desisti do texto após ler o primeiro: o peso suportado pelos pneus durante o uso interfere diretamente (ou inversamente) em seu tempo de vida útil. Em outras palavras, admitindo que meus pneus tenham durado menos da metade do que ainda poderia ser considerado normal, é possível concluir com segurança: as fábricas de pneus não fabricam pneus aptos a suportar o meu peso. Tradução: preconceito. Gordofobia, já tem até nome. Como todo o resto de tudo o que temos acesso, também os pneus têm sua vida comprometida ao serem adquiridos por um gordo. Mas como essa palavra pode soar ofensiva, então vou reescrever a frase: o pneu dura menos ao ser adquirido por uma pessoa, digamos, ligeiramente acima do peso.
De maneira que estou procurando apoio. Não para emagrecer (disso eu já desisti), mas para exigir os nossos direitos. Gordo só é bem-vindo em açougues, já estou ficando cansado disso. Como se não bastasse a dificuldade que temos para comprar roupas, encontrar cadeiras que nos suportem em locais públicos e restaurantes, como se não sofrêssemos com placas e etiquetas informando o peso máximo de um produto bem abaixo do que vemos quando subimos na balança (coisa que parei de fazer há algum tempo), agora teremos que trabalhar até mais tarde para economizar dinheiro para trocar pneus, simplesmente porque, para nós, os gordos, eles duram menos. Basta! Precisamos reagir. Vamos exigir da Pirelli ou de quem quer que seja um tipo de pneu mais resistente, seja qual for o peso que carrega, e que o governo pague a diferença, não seria justo?
Ultimamente todos os direitos têm sido alvo de lutas e conquistas, chegou a nossa hora. O mundo está cheio de nós, mas não nos recebe com cortesia, isso é inaceitável em uma sociedade acolhedora e democrática como a nossa. Queremos reconhecimento, queremos quotas nas universidades, no Congresso, nas repartições. Queremos manequins de lojas com a barriga com o formato da nossa, ora essa. Vamos criar o Dia da Consciência Gorda, inventar sigla se for preciso. Criar métodos para saber se o gordo realmente se sente gordo. Cisgordo, Transgordo, Heterogordo, Pangordo, vamos mandar tudo isso para o Congresso. Do jeito que andam as coisas, não vai demorar e o sujeito que está uns quilinhos acima
do que deveria vai ser informado diretamente por um dono de loja de pneus que seu produto terá uma duração reduzida porque ele pesa mais do que o normal. Ofensa à integridade física e moral do cidadão de bem que trabalha, come (mais do que poderia, é verdade), bebe e paga impostos.
E como não terminei de ler a matéria, naturalmente não soube de nenhum outro motivo que contribuíram para a deterioração dos meus pneus, mas certamente iria descobrir que eles não tiveram uma alimentação saudável nem praticaram atividade física, não duvido nada.
Quer saber? Acho que vou pessoalmente colher as assinaturas e elaborar um projeto de lei de iniciativa popular. Pretendo também colocar esse tema na pauta dos nossos direitos. Alimentação Saudável e Atividade Física? Vamos com calma. A menos que se goste de pegar peso nas academias ou que se queira ter vida eterna aqui na terra como ensinam os entendidos, para nós, gordos e mortais, ouvir essa receita para qualquer problema precisa ser considerado bullying, com pena de indenização do sujeito que falou, e, em alguns casos, prisão do infrator. Valendo inclusive para os médicos, nutricionistas e afins.
Lutemos, pois!
Por enquanto eu vou ligar para a loja e agendar a troca dos pneus.
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