Ano: 2053
Umberto Antonio Janoni De Vuono
Poços de Caldas/MG
Mês: junho.
Horário de Brasília: 5h59.
O dia parece não ter forças para amanhecer e ocupar o lugar da noite de angustiante calor que em momento algum cede. Aos poucos, o alvorecer proporciona os primeiros raios de sol e, junto a eles, a radiação ultravioleta.
Minha camiseta, empapada de suor, denuncia o sofrimento da noite anterior. Ligo a televisão, dentro do horário em que seu uso é permitido, e logo as notícias do Jornal Mundial do Clima destacam as manchetes:
“Proibição do uso de ar-condicionado é prorrogada por mais 180 dias”
“Cota de energia elétrica por habitante é reduzida em 17% pela segunda vez”
“Presidente da ONU se refere ao presidente do G20 como irresponsável e mentiroso”
“Número de nômades, conhecidos como desabrigados do clima, alcança os dez dígitos pela primeira vez”
“Governo americano libera bônus de US$ 5.750,00 às vítimas da desertificação do Texas”
Sem qualquer sentimento, desligo o aparelho e tento não pensar nas perturbações diárias da mudança climática que afeta as nossas vidas, mas confesso ser impossível não me preocupar.
Após a declaração do final da pandemia de covid-19 em 2023 pela OMS, na década seguinte os cientistas perceberam que 15% das pessoas que se infectaram com o coronavírus, apesar de curadas, desenvolveram mutações ao se infectarem com o vírus da gripe, propagando uma virose emergente que ficou conhecida como a gripe do boi, que apesar de não atacar os humanos de forma fatal, acabou com a maior parte do rebanho de bovinos da face da Terra.
Herdamos um planeta doente, ardendo em febre e desequilibrado. Nossos antepassados sequer imaginaram o tamanho do problema que criaram. Estamos confinados como gado e, talvez, o nosso fim seja o mesmo que o dele. Com o aquecimento global acentuado, a transmissão de vírus entre diferentes espécies de mamíferos aumentou em mais de 3.000%.
Caminhar nas ruas é recomendado somente a partir das 17h, quando o sol está mais fraco e o risco de câncer de pele é menor. Apesar de não haver multas para quem desrespeita a recomendação, a probabilidade de desenvolver um câncer de pele subiu 450% nos últimos 20 anos e o SUS não acolhe mais estes pacientes.
Praticamente não existem mais praias depois do avanço dos oceanos, que deixou a maioria das cidades costeiras submersas e produziu um contingente enorme de desabrigados que, apesar da união dos esforços dos governos globais, não conseguem trabalho ou moradia.
Nos últimos 7 anos passamos todos a trabalhar para as empresas mantenedoras do sistema global, que se dividem em alguns poucos conglomerados. Sem recursos, os países perderam a capacidade de sustentar e manter o seu poder político e econômico, sendo obrigados a recorrer a gigantescos conglomerados multinacionais para continuarem operacionais. Poderosas empresas como Tesla, Apple e Google uniram seus capitais e deram início ao grande Conglomerado das Américas, que hoje é integrado pelas 100 maiores empresas do mundo e responsável por zelar pela manutenção de um terço dos governos que tutelam no planeta.
A manutenção da democracia é um ativo negociado na bolsa de valores e líderes dos países são apontados pelos conselheiros das empresas envolvidas.
O aporte de capital para manutenção do sistema global é direcionado aos países amistosos ao regime ultracapitalista mantido pelo conglomerado financeiro que tiver mais interesse naquele país.
Com o apogeu da Inteligência Artificial, em 2031, e a ampla popularização da sua utilização, grupos organizados tiveram acesso a ferramentas e conhecimentos preciosos que vieram a culminar com o surgimento da poderosa organização CO2 Shadow, que ganhou notoriedade aos 11 dias de setembro ao parar a economia digital global, retirando do mercado e eliminando dos sistemas globais todos os Bitcoins. O evento ficou conhecido como “A noite escura de Satoshi Nakamoto”.
Diante do pânico causado após o evento, a utilização da Inteligência Artificial foi tutelada por grandes big techs e seu controle recuperado e contido apenas para o interesse dessas empresas. Algumas pessoas próximas ao governo americano da época apontaram a Tesla como mentora e responsável por alimentar o crescimento da CO2 Shadow já nos primeiros ataques do grupo, direcionados aos campos de extração de petróleo, mas como ninguém apresentou provas, tudo não passou de teoria da conspiração.
As plantações mundiais queimaram e a sobrevivência humana é garantida pela mandioca, uma raiz de ampla adaptação que sofreu modificações pela alta interação do genótipo com o ambiente, proporcionando a base alimentar de todas as rações humanas produzidas pelo Conglomerado das Américas.
Infelizmente demoramos demais para reagir e combater o aquecimento global, ultrapassamos o ponto de não retorno e, mesmo com os inúmeros alertas da ONU, chegamos aonde temíamos, um ponto irreversível com consequências dramáticas para todo o planeta. Milhões de vidas foram ceifadas devido a imensos furacões, enchentes e incêndios florestais. A desertificação de enormes áreas do planeta tornou imprópria a subsistência nessas regiões e obrigou milhões de pessoas a emigrarem para países vizinhos, sobrecarregando os recursos disponíveis e contaminando inúmeros aquíferos.
Limitamos a vida na Terra a uma penosa “sobrevivência” pontuada por severo racionamento de energia, água e alimentos. Nossas vidas dependem de logísticas complicadas que distribuem o essencial para nos manter vivos. Nossos sonhos e famílias, estas cada vez mais raras de serem encontradas, foram vendidas algumas décadas antes para pagar os combustíveis fósseis que movimentavam o mundo de outrora. Com o passar dos anos e o agravamento da falta de recursos, os casais perderam o interesse em ter filhos e de realizar adoções.
Avistar uma criança nos tempos atuais é algo raro e os pais são julgados como inconsequentes. Estamos fadados ao desaparecimento, a saúde mental abandonou a maioria das pessoas e o ultrapessimismo moral potencializou a tese schopenhaueriana, que declara impossível qualquer espécie de aprimoramento moral.
O egoísmo impera nas ruas repletas de veículos abandonados e ocupados por sem-teto, desde que a venda da gasolina foi proibida pelo Conselho Global do Clima, entidade que mantém operante algumas das funções que os países abandonaram por falta de recursos ou interesse de seus políticos.
O Sol mata e o calor acentua a falta de água potável, a solução encontrada pelo Conselho Global do Clima foi a dessalinização da água dos oceanos e mares por osmose reversa e, assim, somamos às nossas despesas mensais a conta da água potável que, apesar do baixo custo de produção, (para a dessalinização de 1.000 litros de água usamos a mesma energia que o ar-condicionado de uma casa durante 1 hora) chega em nossas mãos a um custo altíssimo, que põe em risco a nossa sobrevivência caso ocorra um desequilíbrio financeiro do nosso orçamento.
Olho o relógio, as horas parecem não avançar, já não sei se prefiro o dia e a sua lente de luz mortal ou a noite de breu sufocante. Não tenho planos, abandonei os sonhos que um dia chamei de meus, o alimento não sacia, trabalho sem vontade e tenho sede.
Noites e dias se sucedem e, como eu, milhões lamentam a falta de sorte.
Passamos do ponto, a civilização perdeu a oportunidade de reverter o estrago climático, deixamos à deriva o futuro dos nossos filhos e hoje, com amargura, atribuímos a culpa a Deus.
Abro a porta do meu abrigo e imediatamente percebo o toque da intensa luz do Sol. Sem hesitar, livro o meu corpo das roupas que o protegem e posso sentir o calor extremo que invade pela porta, secando as gotículas de suor que escorrem pelo meu rosto.
A nudez já não me incomoda, para os gregos a nudez é o ato intencional de ficar nu, “o uniforme dos justos”. Mesmo sabendo o alto preço que vou pagar, permito que a luz do Sol envolva o meu corpo e, num ímpeto de alegria e liberdade, abro os braços e corro em direção à rua, arremessando longe o meu último pertence, um par de óculos que ganha altitude e desaparece na claridade do dia.
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