Uma vela acesa no meio do inverno
Sílvio Manuel Costa e Silva
Pombal/Portugal
Quando a noite conquista o céu, o menino foge do escuro porque está sozinho no meio do monte. Mas o enforcado, que está preso ao muro do cemitério, obriga-o a acelerar o passo.
Com o peito aos saltos, o menino entra na sala e metralha o silêncio com palavras confusas. O provedor pousa os cotovelos no tampo da mesa, cola os dedos das mãos uns nos outros e destrói o bulício, “Cala-te”, a mãe do menino assusta-se. Por isso sai da cozinha, entra na sala e abre a boca. O menino, para antecipar-se à pergunta, grita, “Vi um enforcado”, ao saber da notícia, a mãe do menino parece uma pedra e o provedor, com a testa enrugada, ergue o pensamento, vai até à secretária e desenha um número no visor do telefone.
A meio da noite, há um batalhão de olhos a indagar o Xavier e, atrás da tragédia, há a viúva. Algumas mulheres, coladas a ela, massajam-lhe o rosto e informam-na, “Se precisares de algo, conta connosco”, com linhas brancas a rasgar o céu, o pároco vocifera palavras da bíblia, o provedor transforma-se numa fábrica de insultos e os dois polícias com abdómens dilatados dizem que os senhores de cor estão a virar a aldeia do avesso. Essa opinião enfurece o presidente da junta, “Temos que os esbofetear”, o pároco, como não está de acordo, afirma-lhe que não é com fel que o problema se resolve. Mas o provedor relembra-lhe, “Também não é com beijos que se ensina a criança”, a chuva aparece. O polícia mais novo, com o cabelo molhado, sugere, “É melhor adiar para amanhã o preenchimento da papelada”, todos concordam, menos o pároco, porque a ética não lhe permite abandonar o corpo, “Oh homem, fuja do inferno”, o pároco vira-se então para o presidente da junta, “Vou aceitar o seu conselho”.
No dia seguinte, o galo aplaude a alvorada. O menino, a bocejar, abre a janela e olha para as galinhas, para o cão e para a mãe, que está a depenar a macieira, “Olá, mãezinha”, “Olá, querido”, depois muda de roupa e entra na rua, que parece uma praia solitária.
Para indagar a morte, o menino aproxima-se da forca. O padre, aflito, atira-lhe uma pedra, “Vai-te embora”, o menino, como tem medo, voa para a borda do rio, onde as cigarras e os pássaros são uma banda que nunca pára de tocar. No entanto, na hora do almoço, os lobos obrigam-no a subir a encosta. Isso permite-lhe ver um homem enforcado, “Outra vez?”.
O sobressalto, como foi alto, transforma o menino numa bala. Por vê-lo a varrer o silêncio e a meter-se no quarto sem dizer uma palavra, a mãe do menino senta-se na cama e pergunta-lhe, “Qual é o motivo da melancolia?”, “Vi outro corpo agarrado à morte, outro corpo a dançar com o vento”.
O provedor, a perscrutar a praça, os prédios e os pássaros, ouve o telefone, “O menino voltou a encontrar um corpo vazio”, “A sério?”, “A sério”, “E ele?”, “Agora está calmo”, “Quem deixou de viver?”, “Não faço ideia”, o provedor desliga a chamada, senta-se no cadeirão e olha para os quadros que decoram as paredes, para o relógio que garganteia o fim da tarde e para os sapatos que entram no gabinete. Depois olha para o brilho dos olhos, para as curvas dos lábios e para o sinal que a secretária tem na testa. A secretária, que é uma sobremesa que o provedor costuma provar, sorri e atende o marido, “Diz”, “Se o jantar não estiver pronto daqui a pouco, vais levar no focinho”, inquieta, a secretária desliga a chamada.
Sozinho, o provedor telefona para o polícia mais velho, “Boa tarde”, “Boa tarde”, e pergunta-lhe, “Quem é que de manhã perdeu o pio?”, o polícia mais velho, como não sabe, fica apático, com a garganta inerte. O provedor, desapontado, conta-lhe o que o telefone lhe contou, “Os senhores de cor vão ter que conhecer os efeitos da dor”.
O relógio que se casou com a estante anuncia o princípio da noite. O provedor, que disse ao polícia mais velho, “Vou desligar a chamada para regressar ao trabalho”, sai do gabinete, diz adeus a quem circula no corredor e, na rua, acaricia o ombro da menina Joana, “Amanhã vamos dar um passeio?”, “Vamos”, e sorri para a dona Dolores, que ficou atarantada com a resposta da filha.
Em casa, a mãe do menino martela na frase, “Come o peixe”, “Não como. Tem muitas espinhas”, “Come o peixe”, para acabar com o debate, o provedor olha para o menino e aponta-lhe o dedo, “Come”, o menino faz-lhe a vontade e faz dos olhos um dia de chuva. Isso inquieta o provedor, “Qual é o motivo da noite?”, “Pensei nos enforcados”, “A morte está a mostrar-te que a vida tem a espessura de um fio”.
O telefone tilinta, chama por uma voz. A mãe do menino sai da mesa, levanta o auscultador e diz ao provedor, “O polícia mais velho precisa de falar contigo”, o provedor, incomodado, levanta-se, “Boa noite”, ao saber que as sapatadas já desarrumaram os senhores de cor, aplaude a novidade e pergunta-lhe, “Já sabe quem é que de manhã perdeu o pio?”, “O filho do Costa”, “O mais novo?”, “Sim. O que entrou na idade adulta pela porta do gasto”.
O provedor pousa o auscultador no descanso e diz aos olhos que o observam que vai para a sala brincar com os charutos. O menino felicita-o, porque “brincar com os charutos” é uma expressão admirável, e vai para o quarto. Com o pijama vestido, abre a janela e indaga as estrelas, a lua e as sombras, que ocultam os bocejos das galinhas. Depois desliga a luz, deita-se na cama e olha para o tecto, que tem sombras em guerra.
A mãe do menino entra no quarto, fecha a janela e pede ao menino, “Desce as pálpebras”, ele, a sorrir, olha para a mãe, que lhe beija a testa, lhe acaricia o rosto e, no corredor, lhe envia uma flor, “Até amanhã, querido”, “Até amanhã, mãezinha”.
Antes do céu mimar a alvorada, o menino sai da cama e entra na sala. Sentado no sofá, olha para as janelas, para as portas e para o chão, e ouve o provedor a falar para o telefone, “Reformulem o serviço”, e ouve o provedor a rezingar, a insultar a esposa do senhor João, e a dizer que ela merece morrer, ser devorada pelos bichos que vivem dos mortos, e a dizer que o padre, se não pagar a prestação até amanhã, vai ser o próximo. O menino, a tremer, mergulha na sombra e pede ajuda ao seu anjo da guarda.
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