PROSA NACIONAL II CONCURSO 3º LUGAR *

 VINGANÇA

MARIA APPARECIDA S. COQUEMALA - ITARATÉ/SP

Éramos de famílias de prole numerosa, de muita trabalheira, alegrias e tristezas se alternando na vida em construção. Morávamos em pequena cidade, meio perdida no sertão, surgida ao lado da via férrea, a artéria pulsante, com seus trens chegando em longos apitos, trazendo e levando gente, mercadorias, jornais... Famílias vizinhas. De um lado, o movimentado restaurante de uma; do outro, o grande armazém de secos e molhados da outra.
Crescíamos sob as vistas de nossos pais, disciplinadores rigorosos, daí os temores, as travessuras escondidas, a cumplicidade... E mais nos unindo nas brincadeiras, pique, roda, amarelinha e que tais, união com freqüência desfeita pelos desentendimentos. Somente o cirquinho despertava tamanho interesse que as desavenças desapareciam, pois havia mil encargos: mágico, palhaço, equilibrista, dançarina, venda de bilhetes, arrumação das cadeiras, cuidados com os velhos lençóis que as mães emprestavam, venda de pipoca, exibição de cabeça embalsamada de bezerro com quatro olhos... Vinham crianças das redondezas, até adultos. A pequena Josefina, seis anos, loira e graciosa, com sua minúscula sombrinha aberta era a dançarina da corda, mas corda esticada no chão, passos cuidadosos, se equilibrando, uma verdadeira artista, como se sob seus pés houvesse mesmo um negro abismo. Nem o palhaço Pirulito de nariz postiço e cabelos avermelhados por colorau conseguia distrair sua atenção. Gloriosa, chegava ao final, arrancando entusiásticos aplausos. Josefina, a Fininha, a finada, a que um dia numa foto saiu com uma negra mancha sobre o coração. Uma falha imperdoável do fotografo, criticava a família, braba, brabeza já quase apagada quando a menina deu de amarelar. Levada à cidade grande para consulta médica, voltou com usa sentença de morte, para cumpri-la entre as lágrimas desesperadas dos que a amavam. A marca, um aviso?
Entre as muitas crianças, eu e Sunta, uma de cada família, mesma idade, oito anos, gostávamos de brincar de casinha no grande quintal, onde sue pai plantava mandioca, milho, verduras, legumes e... Roseiras das quais as crianças jamais deveriam se aproximar sob pena de castigo. E era ao lado dessas roseiras que à falta de bonecas, criávamos nossas loiras ou ruivas filhinhas, configuradas nas espigas de milho verde, colhidas ali mesmo, entre porquinhos redondos metamorfoseados de batatinhas tiradas das despensas, com suas patinhas de palito de fósforo usado, boizinho de bucha colhida na trepadeira que subia generosa pelas cercas. E era nessa mesma casinha que líamos, mal entendendo, no jornal de meu pai, capítulos de O Guarani, daí as filhinhas se chamarem Ceci e Isabel e o porquinho, Peri.
E chegou o dia do aniversário de Isabel e Ceci, queríamos festejar, mas precisávamos de flores. Onde pegar? Tão perto o canteiro proibido... Não resistimos e colhemos as rosas mais lindas, brancas, amarelas, cor-de-rosa, vermelhas e com elas a alegria das cores e das formas perfeitas que deram à casinha um encanto nunca antes visto, encanto que palavra nenhuma poderia descrever. E aconteceu que o pai de Sunta foi ao quintal e viu... Viu horrorizado o sumiço das rosas. Avermelhou de raiva. Procurou o ladrão e logo o encontrou, entre batatinhas, bucha, espigas e as flores. Arrancou Sunta num repelão, tirou a cinta e bateu sem dó. Os gritos se ouviam longe. Debalde a mãe implorava que perdoasse à filha. Amedrontados, os irmãos se esconderam debaixo das camas. Só quando o vizinho chegou trazido pelos gritos, o pai a deixou, rouca e roxa, estirada no chão.
Semanas transcorreram. Foram-se as marcas do corpo, votamos a brincar, a fazer nossa casinha, buchas e batatinhas se metamorfoseando em animaizinhos queridos. Mas Isabel e Ceci não mais tinham aniversário festivo e sim surras quando desobedeciam.
Sunta não esquecia a dor. Não mais a dor física que a prostrara. Eram doridas lembranças... E por mais que procurasse, nenhuma explicação encontrava para tamanha fúria do pai. Que agora odiava. Confidenciava que um dia o faria padecer como tinha padecido e não mais sofreria se lembrando. Eu sofria o sofrimento de Sunta. E tramamos a vingança.
Todos dormiam. Sunta levantou-se cuidadosa na escuridão da noite, dirigiu-se à porta do armazém, destrancada como sempre, era parte do corpo da casa. Entrou. Levava a caixa de fósforos que eu tinha levado do restaurante do meu pai. Juntou velhos jornais, riscou o fósforo e voltou silenciosa ao quarto. Ninguém percebeu.
O pai vendia também fogos de artifício, daí que bombas explodiram, parte do telhado desabou, rojões brilharam no céu, um verdadeiro espetáculo pirotécnico se desenrolou na noite escura... A vila em peso acorreu, a solidariedade se manifestando em gente trazendo escadas, baldes, mangueiras, a água vindo de todo lado...
O armazém foi reconstruído, a família tinha outros bens.
Jamais se descobriu a causa do incêndio, um segredo que eu e Sunta não dividiríamos com mais ninguém. Sunta estava em paz. O grande agressor tinha sido punido. Sofreu muito. Outros sofreram também e eu Sunta nos entristecemos por eles.
Crescemos lado a lado, o segredo foi guardado. Sunta se casou aos dezesseis anos, um ano depois já era mãe, mais um ano e se separou. Bonita, dinâmica, talentosa, tornou-se uma grande artista de teatro.

Comentários