TIA ANÁLIA
MARIA APPARECIDA S. COQUEMALA- ITARARÉ/SP
Jovem, tinha o corpo bem feito, o rosto gracioso, as covinhas se destacando quando ria. Vaidosa do corpo, da cultura e da inteligência. Mas, o tempo fluiu, os olhos precisaram de óculos, os cabelos, de tinta. Marcas da vida iam aparecendo nas faces, as covinhas graciosas se transformando em rugas... Importava-se, como se importam mesmo as mulheres, mas encarava-as como naturais sinais da passagem do tempo, nela, em todo o mundo, por mais que cirurgias e outros recursos viessem prorrogando a velhice visível.
Nos últimos anos, porém, a aparência a preocupava, desde que dera de observar nos velórios, tanto o morto como as ocorrências do momento. E daí também o desejo de explicação para as atitudes que a face dos defuntos parecia desencadear nas pessoas comuns, no geral, passantes de rua que iam entrando, formalidade nenhuma, quem quer que fosse o falecido, como atraídas pela morte ali concretizada em meio à dor e ao sofrimento.
E como era costume nas pequenas cidades, descobriam o véu que cobria discretamente a face dos mortos, por vezes crispada, por vezes deformada, ou com outras aparências que a morte dá aos que se vão. Faziam caras compungidas e comentários.
- Está feliz agora, está em paz...
_ Parou de sofrer, o coitadinho...
Ah, a Morte implacável, contra os que já não podiam protestar... ah, se pudessem... Como seria prazeroso matar a Morte...
Como se explicaria esse mórbido gosto popular pela apreciação dos pobres defuntos que já não podiam opinar sobre a exposição pública de suas caras? Simples curiosidade? Espanto perante um grande enigma? Consolo? Ainda bem que foi ele, não eu... Assim se perguntava tia Anália. E daí imaginar-se morta, ali estendida, os mesmos comentários. Coitadinha, enfim descansou, a pobrezinha...
Desrespeitoso, hipócrita, costume de gente atrasada, dizia ela.
Passando dos setenta, decidiu-se por se proteger conta a sanha dos curiosos dos velórios. Conversou com o marido, mais velho ainda: quando morresse, nada de exposição do corpo. Sua vontade ficaria expressa no documento já guardado no escritório. O homem riu, mas prometeu cumprir, lhe fosse dado o privilégio de ir depois dela.
Mais anos rolaram. No dia em que o cardiologista recomendou: cuidado, melhor não dormir sozinha, Anália pensou no que aconteceria se morresse dormindo... Assim, simplesmente, em pleno sono, viaja-se desta para a outra vida, acorda-se nela, sem mala (ou seria lenço?) nem documentos, como o dizia a canção? E acordar onde? No céu, no inferno, ou em lugar nenhum, morreu, acabou? Não, a morte não aconteceria assim para ninguém. A mente não entregaria fácil a rapadura, ou melhor, o corpo, claro que não, e daí as lutas agônicas, isso de morrer como um passarinho não passava de ficção. Haveria luta. Mas, e se algo ainda inexplicável pela Ciência sobrevivesse? Alma, espírito, aura, essência, o nome pouco importando. Talvez se visse morta, a boca escancarada, os olhos abertos, feia de dar dó. Depois a funerária, a maquiagem, passantes curiosos entrando, descobrindo o rosto, os comentários, os mesmos tantas vezes ouvidos. Não. Nada disso aconteceria, as providências tinham sido tomadas, pensou então na foto no túmulo. Vezes sem conta observara o mau gosto dos vivos contra os mortos indefesos, colocando nas sepulturas fotografias da extrema velhice. Como se só aquelas pudessem expressar a longa vida vivida, por vezes tão bela nos seus tantos lances, tanta beleza na mesma face em outros dias... Pensou em si mesma, rugas se cruzando na face, olhos quase sumindo nas pálpebras caídas, registradas na última foto. Colocariam essa? Fariam tal afronta? Ó crueldade... Ó povo sem coração... Escolheu algumas da juventude, anexou ao documento na gaveta. Pronto! Já podia morrer tranqüila.
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